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Escada para peixe aumenta risco de extinção, diz grupo
Estudos sugerem que mecanismo, criado no hemisfério Norte, falhou nos trópicos
Dispositivo funciona como uma "armadilha ecológica",
atraindo cardumes para ambientes mais pobres e
prejudicando reprodução
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Se o presidente Lula soubesse como é dura a vida dos bagres, não manifestaria tanto
desprezo por esses peixes.
Tome por exemplo os mandis do rio Tocantins: todo ano
eles empreendem uma viagem
extenuante de centenas de quilômetros para desovar. Ao chegarem ao local da barragem de
Lajeado, ao norte de Palmas,
são surpreendidos por aves
aquáticas, botos e jacarés, predadores que se concentram
abaixo da represa.
Depois, precisam atravessar
uma escada construída especialmente para facilitar a transposição da barragem -mas que
é patrulhada noite e dia por peixes carnívoros. Os que conseguem atravessar os 874 metros
de escada sofrem ainda o ataque de tucunarés e piranhas,
que habitam o reservatório. Os
que têm sucesso na jornada dificilmente farão o percurso de
volta até seu habitat original.
Pior: suas larvas e seus ovos
serão quase todos destruídos
ou devorados, o que põe populações inteiras de mandis -e
outras três dezenas de peixes
migradores do Tocantins- em
risco de extinção.
O fenômeno observado em
Lajeado por cientistas da Universidade Estadual de Maringá
(PR) e da Universidade Federal
do Tocantins está provavelmente se repetindo em vários
rios Brasil afora: as chamadas
escadas de peixe, concebidas
para atenuar o impacto de hidrelétricas sobre a fauna, em
vários casos acabam tendo o efeito inverso
-estão acelerando extinções.
"Elas funcionam como armadilhas ecológicas", diz o biólogo
Fernando Mayer Pelicice, da
Universidade Estadual de Maringá. "Se forem feitas sem
muitos estudos técnicos, acabam tirando os peixes de um
ambiente onde eles têm condições de se reproduzir e jogando-os em um ambiente mais
pobre", afirma.
Em um estudo publicado on-line no mês passado na revista
científica "Conservation Biology", ele e seu colega Angelo
Antonio Agostinho analisam
casos de escadas instaladas na
usina de Porto Primavera, no
rio Paraná, e do complexo de
hidrelétricas do rio Paranapanema. Concluíram que os dispositivos nos dois rios causaram impactos tão grandes à
fauna que deveriam ser desativadas "imediatamente".
No caso das usinas de Canoas
1 e 2, no Paranapanema, operadas pela Duke Energy, as escadas causaram um colapso na
pesca a jusante (rio abaixo) dos
reservatórios. No primeiro ano
de operação das escadas, em
2001, conta Pelicice, "a quantidade de peixes que subiu foi
enorme". No segundo ano, no
entanto, a piracema colapsou
-sinal de que os peixes que subiram não desceram depois.
O pior, diz o biólogo, é que
desta vez culpa não foi da empresa. "A Duke não queria
construir as escadas, mas foi
forçada a fazê-lo pelo Ministério Público", afirma Agostinho.
As razões pelas quais os peixes não voltam são várias. Mas,
em geral elas são uma
combinação da biologia dos peixes
tropicais e
do ambiente alterado pelas construção das usinas hidrelétricas.
Peixes migradores dos trópicos depositam seus ovos em
afluentes dos grandes rios. Os
ovos e as larvas descem o rio,
seguindo a correnteza, e amadurecem no caminho. Mas, para isso, eles dependem de águas
agitadas e turvas, o que as represas em geral não têm. Os adultos, por
sua vez, tendem a evitar água
parada. A aposta de Agostinho e
Pelicice é que, na viagem de
volta da piracema, a água parada da represa funciona como
uma barreira. "Quando chegam
à água estagnada eles não descem mais", diz Pelicice.
Esquema importado
As conclusões dos pesquisadores ainda são preliminares, e
é impossível agora dimensionar qual tem sido o real impacto das escadas e de outros mecanismos de transposição de
barragens sobre a fauna dos
rios brasileiros. Segundo a dupla, a razão dessa ignorância é
que sempre se assumiu que as
escadas -algumas implementadas há mais de 50 anos- fossem uma boa idéia.
Isso porque no hemisfério
Norte, onde foram concebidas
para facilitar a subida de salmões, as escadas funcionaram.
Os poucos dados que sugeriam o oposto no Brasil estão perdidos em relatórios técnicos,
afirma Pelicice. "Os
primeiros estudos sistemáticos
são de uma década para cá."
No ano passado, cientistas de
vários países reuniram pela
primeira vez dados sobre a eficácia das escadas em várias
barragens da América do Sul. O
resultado saiu na forma de uma
série de estudos numa edição
especial da revista "Neotropical Ichthyology" (www.ufrgs.br/ni). Eles são unânimes em
recomendar parcimônia na
adoção do mecanismo.
Em Lajeado, o impacto negativo da escada foi tão grande
que o Ibama determinou seu
fechamento. "Uma escada com
subida indiscriminada não é
boa em nenhuma situação", diz
Agostinho. "Uma subida controlada ainda pode ajudar a
manter a variabilidade genética dos cardumes a montante.
Mas, se há ambientes propícios
à reprodução a jusante e ambientes piores a montante, não
há razão para a transposição."
O problema, afirma Pelicice,
é convencer as autoridades e as
empresas disso. "A lei determina que você tem de adotar medidas de mitigação, e o pessoal [empresas] acha mais fácil construir
as escadas."
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