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+ Marcelo Gleiser
A primeira célula
Para entender a vida, temos de buscar a origem de sua unidade
A prendemos em biologia, numa
das primeiras lições: a célula é
a unidade fundamental de um
organismo, consistindo de uma membrana circundando um núcleo que flutua em citoplasma.
Sabemos que células podem sobreviver por conta própria. Muitos organismos microscópicos, como a ameba
ou o paramécio, consistem em apenas
uma célula. Um vírus é uma entidade
ainda mais simples, mas que não é
propriamente viva: consistindo de
uma cápsula feita de proteína e um interior com material genético, só consegue se replicar quando está dentro
de uma célula viva.
Portanto, podemos dizer que a célula é a unidade fundamental da vida. Se
quisermos entender a origem da vida,
temos que entender como surgiram as
primeiras células.
Alguns cientistas estão tentando fazer exatamente isso. Em seus laboratórios, procuram sintetizar uma célula primitiva, capaz de se reproduzir e
sobreviver por si mesma. Em ciência,
a mesma questão pode ser abordada
de várias formas diferentes. No caso
da origem da primeira célula, existem
três caminhos.
No primeiro, investigado no Instituto J. Craig Venter, cientistas procuram uma célula mais básica: usando o
micróbio parasita Mycoplasma genitalium, responsável por infecções urinárias, partem do mais complicado para
o mais simples. O parasita tem apenas
528 genes no seu DNA, dos quais muitos são supérfluos. A questão é quais
são eles e qual é o número mínimo de
genes numa célula capaz de sobreviver. O processo é lento: combinações
de genes são extraídas metodicamente
e a célula resultante é testada.
Um dia os pesquisadores esperam
chegar ao conjunto mínimo de genes
capaz de manter a célula viva. Uma vez
que estes sejam encontrados (se forem encontrados), o plano é recriar o
DNA sinteticamente. A tarefa é complexa: ninguém conseguiu criar um
DNA com centenas de milhares de
unidades. Mesmo se o projeto falhar,
as técnicas que estão sendo desenvolvidas permitirão o reparo e a reconstrução de material genético. Por
exemplo, seria possível criar uma célula capaz de converter detritos orgânicos em hidrogênio combustível.
Críticos afirmam que esse procedimento não leva de fato à resolução do
enigma da primeira célula. Afinal, esse
parasita evoluiu durante centenas de
milhões de anos para chegar ao seu estado atual. Outro grupo publicou uma
receita para a construção de uma célula usando partes avulsas, como num
kit de montagem de aeromodelo. Nessa receita, o maquinário molecular
responsável pela vida seria baseado
num genoma sintético com 151 genes e
mais algumas proteínas. Uma vez encontrado, esse material é circundado
por uma membrana de gordura (lipídios). Ao menos a membrana foi construída com sucesso. E proteínas foram
sintetizadas em seu interior, o começo
de algo semelhante à vida.
Mesmo esse processo usa moléculas
modernas, produtos de bilhões de
anos de evolução. O desafio é começar
do começo, criando vida a partir do
que não vive, como ocorreu na Terra
há aproximadamente 3,8 bilhões de
anos. Um terceiro grupo, da Universidade Harvard, vem tentando fazer isso: uma célula consistindo de uma
membrana e uma única molécula de
RNA capaz de se auto-replicar.
O desafio aqui é encontrar essa molécula. Estamos em desvantagem: a vida teve centenas de milhões de anos
para realizar seus experimentos até
encontrar a combinação certa. Por outro lado, temos nossa curiosidade e o
conhecimento acumulado de centenas de anos de ciência. Com paciência
e persistência, não se surpreenda se,
em algumas décadas, gerar vida no laboratório virar rotina.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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