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ANTROPOLOGIA
Mutação teria sido selecionada na evolução por dar resistência a doença transmitida por ingestão de carne
Canibalismo deixa marca no DNA humano
REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Poucas coisas parecem um sinônimo tão óbvio de selvageria, mas
o canibalismo pode ter sido tão
importante para os ancestrais da
humanidade que deixou uma
marca nos próprios genes do Homo sapiens em todo o planeta.
A assinatura genética desse possível "pecado original" foi rastreada por uma equipe de cientistas
britânicos, na forma de uma resistência natural de certos indivíduos às chamadas doenças de
príon. Essas moléstias, como o
mal da vaca louca, são transmitidas pelo consumo de carne contaminada. A grande questão é saber
qual carne -e, para os pesquisadores, a balança dos dados pende
para a carne de seres humanos.
Foi a partir do povo foré, de Papua-Nova Guiné, que John Collinge e colaboradores do Imperial College de Londres traçaram
sua teoria. Até os anos 50 do século passado, a etnia devorava ritualmente as pessoas que morriam. A prática causava epidemias do "kuru", um mal que chegou a matar 1% da população foré
por ano. Como se descobriu mais
tarde, o "kuru" era uma doença
de príon, transmitida durante os
festins antropofágicos.
Esse tipo de moléstia surge graças a uma versão alterada e infecciosa do príon celular, uma proteína comum no cérebro. Aparentemente, o príon maligno consegue modificar as formas normais
da proteína, gerando um agregado protéico que arrebenta os neurônios (células nervosas) e leva
gradualmente à morte.
Acontece que a troca de uma só
"letra" química do DNA no gene
que contém instruções para estruturar o príon normal parece
conferir resistência à versão maligna da proteína. Isso só ocorre
quando a troca se dá em uma das
duas cópias do gene (todas as pessoas recebem duas versões de cada gene, uma do pai e outra da
mãe). Pelo visto, a alteração cria
uma proteína um pouco diferente, que o príon assassino tem mais
dificuldade de afetar.
O estudo saiu na edição de hoje
da revista americana "Science"
(www.sciencemag.org).
Entre os forés, 55% da população -e quase todos os que estavam vivos quando eles ainda
eram canibais- tinha uma cópia
de cada tipo de gene. Era de esperar, mas 48% dos turcos, 38% dos
franceses e 32% dos jamaicanos
tinham o mesmo perfil de DNA.
Isso indicaria que o canibalismo
ajudou a fazer com que a troca de
"letra" se tornasse vantajosa ao
longo da evolução humana. Do
contrário, muitos morreriam de
doenças de príon. A mutação parece ser exclusivamente humana:
não aparece nos outros primatas e
existe há cerca de 500 mil anos.
"Não é possível afirmar que o
canibalismo causou isso só com
base nesse trabalho", diz Sandro
de Souza, do Instituto Ludwig de
Pesquisa sobre o Câncer em São
Paulo. "Os dados sobre essa prática em hominídeos [como os
neandertais] é que tornam a tese
mais forte", pondera o biólogo.
Uma possibilidade é que a resistência tivesse surgido graças ao
consumo de carne de outros animais com a doença, como ocorre
até hoje com o mal da vaca louca.
"Mas não é tão comum que o
príon salte a barreira de espécies.
Seria mesmo mais fácil passar de
pessoa para pessoa", diz Souza.
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