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São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

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AMBIENTE

Animais que morreram nas Canárias tinham sintomas de descompressão e podem ter emergido para fugir de som

Sonar desorienta e encalha baleias, afirma pesquisa

Patrick Guigueno/France Presse - 30.out.2000
Baleia-bicuda morta após encalhar em Pen Ermalo, na Bretanha


REINALDO JOSÉ LOPES

FREE-LANCE PARA A FOLHA

Donas de um dos ouvidos mais sensíveis do reino animal, as baleias podem estar encalhando e morrendo em massa por causa desse sentido aguçado. E o vilão, sugerem pesquisadores espanhóis e britânicos, são os exercícios militares feitos com sonar.
O grupo conseguiu correlacionar a morte de 14 baleias-bicudas com uso de sonar em exercícios da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), liderados pela Espanha nas ilhas Canárias, em 24 de setembro do ano passado.
Os bichos começaram a encalhar cerca de quatro horas depois do início dos testes e apresentavam vários dos seus órgãos cheios de bolhas de ar. É um sintoma de descompressão, mal que acomete os mergulhadores que sobem rápido demais à superfície. Esse padrão de danos internos também apareceu em baleias e golfinhos que encalharam no Reino Unido nos últimos dez anos.
Ainda é difícil explicar como o sonar pode ter afetado os animais de forma tão violenta, mas o fato é que todo cuidado é pouco. "O Ministério da Defesa espanhol suspendeu todas as manobras militares nessa zona até que se esclareçam definitivamente as causas do encalhe e da morte desses cetáceos [ordem de mamíferos a que pertencem baleias e golfinhos]", afirmou à Folha o veterinário espanhol Antonio Fernández, 44, da Universidade de Las Palmas de Gran Canaria.
Ao lado de seu colega britânico Paul Jepson, da Sociedade Zoológica de Londres, Fernández coordenou o estudo que está na última edição da revista científica "Nature" (www.nature.com).
O pesquisador diz não acreditar que os exercícios militares sejam a principal causa de encalhamento de baleias. "Mas o problema continua a se repetir em associação com as manobras. É a terceira vez que ocorre a mesma coisa na ilha de Fuerteventura", exemplifica. A outra ilha em que o encalhamento ocorreu foi a de Lanzarote, onde vive o escritor português e Prêmio Nobel José Saramago.

Baleias com dentes
As baleias que terminaram seus dias nas praias das Canárias estão, na verdade, mais para golfinhos grandes. Assim como eles, possuem dentes afiados (ao contrário das imensas baleias filtradoras que trocaram os seus por barbatanas ao longo da evolução) e se alimentam de peixes e outros animais marinhos, não chegando a mais de 7,5 m do focinho à cauda e três toneladas de peso.
Três espécies estavam entre as vítimas: a baleia-bicuda-de-cuvier (Ziphius cavirostris), a baleia-bicuda-de-blainville (Mesoplodon densirostris) e a baleia-bicuda-de-gervais (Mesoplodon europaeus). As duas primeiras já foram avistadas na costa brasileira. Quando os pesquisadores chegaram à praia, alguns dos bichos tinham acabado de morrer e outros ainda agonizavam.
A autópsia das baleias-bicudas revelou bolhas de tecido adiposo espalhadas por diversos órgãos vitais, rompendo vasos sanguíneos e causando hemorragias por toda parte. Os cetáceos britânicos tinham o mesmo problema, em especial no fígado. As lesões não foram causadas por doenças, dizem os cientistas. Nenhuma bactéria patogênica foi detectada nos cadáveres, por exemplo.

Descompressão
Segundo Fernández, a melhor explicação para essas bolhas destruidoras é o fenômeno da descompressão. Mergulhar dezenas ou centenas de metros é uma experiência complicada porque a pressão exercida pela água aumenta de acordo com a profundidade, de maneira que o próprio ar presente no corpo se comprime, ou seja, diminui de volume.
Caso ocorra um retorno rápido demais a pressões menores, a tendência é o que o ar se expanda bruscamente, criando bolhas nos órgãos internos -algo que mergulhadores humanos aprenderam dolorosamente ao longo dos séculos. Dá para imaginar o tamanho do estrago desse fenômeno em cetáceos que mergulham por 40 minutos e saturam o organismo de ar para manter o fôlego.
Acredita-se que esses animais tenham desenvolvido maneiras de lidar com a descompressão, mas mesmo esse sistema não seria capaz de lidar com uma volta súbita à tona.
É aí que poderiam entrar os exercícios militares. O sonar lança potentes pulsos sonoros no ambiente marinho, que retornam como ecos. Os padrões sonoros produzidos dessa maneira indicam a presença de objetos ou veículos dentro da água.

Barulho demais
Acontece que os cetáceos usam um sistema parecido para se localizar no oceano. A avalanche dos pulsos de sonar pode ser demais para esses sensores delicados, levando os animais à desorientação, que culminaria com o retorno acelerado à superfície.
Por outro lado, o sonar pode ter causado diretamente a descompressão ao estimular a formação de bolhas, como sugerem outras pesquisas. Fernández diz que não lhe cabe aconselhar o fim das manobras ("Sou apenas um patologista veterinário"), mas afirma que a preocupação com elas é muito justificada.


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