São Paulo, Domingo, 12 de Dezembro de 1999


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+ ciência
A Aids é uma epidemia que leva a uma interação muito mais efervescente entre os pesquisadores e os cidadãos
A revolução da Aids

Esther Hamburger
especial para a Folha

Às vésperas do ano 2000, a cura da Aids não foi descoberta, mas diversas articulações surgidas em torno da doença geraram novas formas de produção de conhecimento. Criou-se um saber médico que não sara, mas prolonga e melhora a vida dos portadores do vírus.
Na entrevista a seguir, realizada em Chicago, no congresso anual da Associação Americana de Antropologia, a antropóloga Cristiana Bastos, 40,do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, expõe as novidades inesperadas que a Aids trouxe à medicina. Este é o tema de seu livro "Global Responses to Aids - Science in Emergency" (Respostas Globais à Aids -Ciência Urgente, Indiana University Press, 224 págs., US$ 27.95), resultado de pesquisas em vários países, inclusive o Brasil, e que acaba de ser lançado nos EUA.
No livro, a autora compara as articulações geradas pela Aids nos EUA e no Brasil e especula sobre o potencial criador de possíveis curtos-circuitos entre sistemas de conhecimento diferentes no Primeiro e no Terceiro Mundo.

Em que medida a Aids gerou uma nova forma de produzir conhecimento científico?
O que saliento no livro é uma conjugação em torno da Aids de duas coisas que costumam estar separadas quando se pensa na saúde pública mundial. A Aids mobilizou o olhar apressado, reivindicativo, preocupado e exigente que caracteriza o Primeiro Mundo. Ao mesmo tempo, a doença estimulou o medo da epidemia e da morte em massa, bem conhecido no Terceiro Mundo, que só chegava ao Primeiro por meio de estatísticas.
No campo do establishment médico, que não é necessariamente fechado e conservador, mas que tem seus mecanismos próprios de produção do conhecimento, se fazem propostas de pesquisa, criam-se laboratórios, linhas de pesquisa, mecanismos que não questionam muito o saber já instituído. Independentemente da má ou boa vontade dos pesquisadores, isso é algo que tem uma vontade própria.
Por outro lado, temos um conjunto que se vai configurando como comunidade. As comunidades atingidas eram diversificadas, com os vários padrões de risco que depois vieram a se caracterizar como os homossexuais, os que usavam drogas, os hemofílicos etc. Disso surgiram grupos de doentes. Hoje, já há grupos de doentes em outras áreas da saúde, como doenças profissionais, câncer de mama etc.

Como se formaram esses grupos?
No início o espectro da doença era o de que, uma vez diagnosticada, havia pouco tempo de vida para o paciente. Então havia uma urgência muito grande para a atuação. E aqueles que tinham alguma possibilidade de capital simbólico, cultural e financeiro para se organizar e fazer algo por sua situação, em uma sociedade como a norte-americana, onde há uma tradição de intervir no seu próprio destino, realizaram um esforço de dar assistência aos que estavam diagnosticados. Também pressionaram o establishment para que pesquisasse mais, desenvolvesse sistemas de prevenção e resgatasse o orgulho da medicina de ser capaz de vencer as dificuldades.

Esses grupos foram bem recebidos pelo establishment médico?
Inicialmente, os grupos comunitários se ressentiram do descaso por ser a Aids, então, uma doença caracterizada como majoritariamente de gays. Hoje em dia as coisas estão muito diferentes. O primeiro grupo comunitário, o Gay Men's Health Crisis, surgiu em 1981, quando ainda não havia a palavra Aids. Esse grupo levantou fundos para financiar mais pesquisas. Os mecanismos comunitários começaram a influenciar os órgãos de pesquisa e decisão. Eles começaram a ser uma espécie de contrapoder, que não só financiava, mas também exigia que se prestassem contas da pesquisa e que esta fosse rápida e eficiente.
Esses grupos também davam assistência direta à comunidade, assistiam pessoas que tinham pânico da doença e dos doentes. Foram inventadas formas de aconselhamento, usando recursos da psicologia, e foram desenvolvidas técnicas que não tinham precedentes, como por exemplo o sistema do "buddy", do companheiro voluntário designado para ajudar uma pessoa doente que não tinha quem a auxiliasse.

Você pode dar mais exemplos de como a Aids criou um saber médico diferente?
Alguns médicos desenvolveram um conhecimento que hoje está completamente incorporado, mas que na época não era óbvio, como o uso de um remédio barato e simples como o Bactrin para tratamento preventivo contra doenças associadas à Aids, como a pneumonia. Era um remédio que já existia, mas, quando se falava em Aids, se pensava em termos tão "high tech" que não se dava atenção às coisas mais simples, que acabaram por ser desenvolvidas a partir da prática. Outro exemplo é a recomendação para que se cuidasse da alimentação e do estilo de vida -conselho que não partia do "mainstream" da pesquisa, mas sim dos grupos de base.

Você cita também como uma das novidades o fato de que os médicos tiveram que se associar a sociólogos, antropólogos, psicólogos, algo que já era feito no Brasil no tratamento das doenças infecciosas.
A partir do momento em que há uma espécie de junção heterodoxa de pesquisadores e comunidade, a Aids ganha características diferentes de outras doenças -é uma epidemia que leva a uma interação muito mais efervescente entre os pesquisadores e os cidadãos atingidos. E isso passa rapidamente aos órgãos transacionais, ou supranacionais, ligados à saúde mundial. É então que as coisas vão se transformar. Estou a pensar especialmente na OMS (Organização Mundial da Saúde), que adota de uma forma relativamente original uma grande preocupação com a Aids. Aproveitando experiências em países onde atua, a OMS passa a pensar na Aids como algo multidimensional. Há uma forma de pesquisar que não é menos científica, mas que não é hegemônica, que estaria associada a essa visão multidimensional da etiologia das doenças e de resposta à doença. Essa forma estaria mais presente nos países que historicamente haviam mantido uma tradição de pesquisa sobre doenças infecciosas, como é o caso do Brasil.

Essa tradição faz do Brasil um caso privilegiado?
Sim, e é por isso que fiz minha pesquisa também no Brasil. Faz parte até da auto-imagem da medicina brasileira essa importância das pesquisas e descobertas na área da tropicologia. Nos países onde as doenças ditas tropicais nunca deixaram de ser um problema de saúde pública e uma preocupação prioritária, essa apreciação do caráter multidimensional das doenças esteve sempre presente. Qualquer médico sanitarista sabe que a pobreza, o desmatamento da Amazônia, a urbanização caótica, sistemas ruins de saneamento e pouca instrução relativa aos cuidados primários de saúde são determinantes na distribuição de uma doença. O sanitarista foi instruído nas escolas de medicina social e saúde pública, muito presentes no Brasil e em outros países mais vulneráveis.

No Brasil também se produziu conhecimento médico com a incorporação da comunidade, como nos EUA?
Eu não estava à espera de encontrar relações entre a comunidade médica e os atores sociais. Enquanto nos EUA cientistas e agentes sociais estão geograficamente próximos, no Brasil eles estão distantes. O saber é produzido fora e chega por meio de publicações estrangeiras, revestido de uma força simbólica e material difícil de contornar. As pessoas falam: "Isso é conhecimento de Primeiro Mundo, não temos como fazer face a isso". Não imaginam que poderiam fazer coisas mais complexas, embora mais baratas, com sua capacidade mental desenvolvida. Há uma arte da clínica que é muito mais complexa.
A diferenciação entre quem está no terreno, utilizando o conhecimento, e o conhecimento que vem de fora lembra uma situação parecida com a da colonização, em que se apaga a autonomia do "colonizado", porque é difícil falar no idioma exato do conhecimento hegemônico. Então, se você não é capaz de produzir um artigo de pesquisa e publicar no "New England Jornal of Medicine", acha que é incapaz de fazer pesquisa. Mas, quando é capaz de fazer pesquisa, você tem muito a dizer, porque tem uma experiência clínica e uma capacidade de intervir muito grande, que vem não só da tradição de tratar as doenças infecciosas com complexidade, mas também de articular essa novidade que é a Aids.

No livro você sugere que o Brasil não desenvolveu esse potencial de pesquisa...
Talvez hoje a Aids já tenha se estabelecido como doença bipolar novamente. No Primeiro Mundo há tratamentos caros, mas, no Terceiro Mundo, a Aids permanece uma doença massificada, infecciosa. Embora houvesse o potencial para o curto-circuito cognitivo, a falta de recursos contra hegemônicos talvez o tenha inviabilizado. Talvez, embora nos termos da biomedicina os pesquisadores estejam prontos para superar a metáfora guerreira que vem caracterizando os modelos de explicação e as estratégias de tratamento da doença, adotando modelos inspirados em sistemas complexos, de rede, a sociedade ainda não esteja apta para um modelo menos violento de convivência. A sociedade ainda pensa em si em termos de guerra.



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