São Paulo, sexta-feira, 13 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

Esperança renovada

MAYANA ZATZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A pesquisa que acaba de ser publicada na revista "Science" por um grupo de cientistas coreanos (Hwang e colegas, 2004) confirma a possibilidade de obter células-tronco pluripotentes (capazes de se diferenciar em vários tecidos) a partir da técnica de clonagem terapêutica ou transferência de núcleos (TN). Trata-se de uma nova esperança de obtenção de células-tronco para fins terapêuticos, e poderá no futuro representar a esperança de cura para milhares de afetados por doenças neurodegenerativas, muitas delas letais antes da segunda década de vida.
Essa pesquisa está sendo publicada num momento extremamente importante no Brasil, em que se discute um projeto de lei sobre biossegurança que veta pesquisas com embriões. O projeto que acaba de ser aprovado pela Câmara dos Deputados mostra uma confusão entre três conceitos: a) clonagem reprodutiva; b) clonagem terapêutica; e c) terapia celular com células-tronco (que não é sinônimo de clonagem terapêutica).
Antes da votação do texto definitivo no Senado Federal, é fundamental que os parlamentares entendam que a terapia celular com células-tronco, incluindo as embrionárias, podem representar a esperança de tratamento para milhões de brasileiros afetados por doenças genéticas (que atingem mais de 5 milhões de pessoas, a maioria crianças e jovens), que sofrem de doenças comuns como o diabetes e a doença de Parkinson, ou que estão incapacitados porque sofreram acidentes.
A clonagem reprodutiva humana, que seria a tentativa de produzir uma cópia de um indivíduo, é condenada por todos. Deve realmente ser proibida.
A clonagem terapêutica ou transferência de núcleo nada mais é do que um aprimoramento das técnicas hoje existentes para culturas de tecidos, que são realizadas há décadas. A vantagem é que, ao transferir o núcleo de uma célula de uma pessoa para um óvulo sem núcleo, esse novo óvulo, ao se dividir, gera células potencialmente capazes de produzir qualquer tecido em laboratório.
Isso abre perspectivas fantásticas para futuros tratamentos. Seria o caso de reconstituir a medula de alguém que se tornou paraplégico após um acidente, ou de substituir o tecido cardíaco em uma pessoa que sofreu um infarto. Entretanto, no caso de portadores de doenças genéticas, não seria possível usar as células da própria pessoa (porque todas têm o mesmo defeito genético).
Existem células-tronco em vários tecidos (como medula óssea, sangue e fígado) de crianças e adultos. Entretanto, a quantidade é pequena, e não sabemos ainda em que tecidos elas são capazes de se diferenciar. A maior limitação dessa técnica, o autotransplante, que tem mostrado resultados promissores em pessoas com insuficiência cardíaca, é que ela também não serviria para portadores de doenças genéticas.
O sangue do cordão umbilical e da placenta é rico em células-tronco, mas não sabemos ainda qual é seu potencial de diferenciação. Se as pesquisas mostrarem que células-tronco de cordão umbilical serão capazes de regenerar tecidos ou órgãos, serão sem dúvida a fonte mais importante.
Teríamos de resolver então o problema de compatibilidade entre as células-tronco do cordão doador e o receptor. Para isso será necessário criar, com a maior urgência, bancos de cordão públicos. Quanto maior o número de cordões em um banco, maior a chance de achar um compatível.
Se as células-tronco de cordão não derem os resultados esperados, a alternativa será o uso de células-tronco embrionárias. Elas podem ser obtidas pela técnica de transferência de núcleo, como na pesquisa sul-coreana, ou a partir de embriões que são descartados em clínicas de fertilização.
É justo deixar morrer uma criança ou um jovem afetado por uma doença neuromuscular letal para preservar um embrião cujo destino é o lixo? Um embrião que, mesmo implantado em um útero, teria um potencial baixíssimo de gerar um indivíduo?
Ao usar células-tronco embrionárias para regenerar tecidos em uma pessoa condenada por uma doença letal, não estamos na realidade criando vida? Isso não é comparável ao que se faz hoje em transplantes, quando se retiram os órgãos de uma pessoa com morte cerebral, mas que poderia permanecer em vida vegetativa?
A maioria dos países da União Européia, o Canadá, a Austrália, o Japão e Israel aprovaram pesquisas para obtenção de células-tronco embrionárias obtidas por clonagem terapêutica ou de embriões com até 14 dias. Essa é também a posição das academias de ciência de 63 países, inclusive a brasileira.
Muitos acreditam que a vida começa no momento da fertilização. Entretanto, cientistas da Coréia acabam de demonstrar que células-tronco pluripotentes podem ser obtidas sem fertilização. É fundamental que a nossa legislação também aprove essas pesquisas, porque elas poderão no futuro salvar inúmeras vidas.


Mayana Zatz é professora-titular de Genética Humana e Médica no Instituto de Biociências da USP, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano/IB-USP, presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular e membro da Academia Brasileira de Ciências


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