|
Texto Anterior | Índice
ARTIGO
Esperança renovada
MAYANA ZATZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
A pesquisa que acaba de ser publicada na revista "Science" por
um grupo de cientistas coreanos
(Hwang e colegas, 2004) confirma
a possibilidade de obter células-tronco pluripotentes (capazes de
se diferenciar em vários tecidos) a
partir da técnica de clonagem terapêutica ou transferência de núcleos (TN). Trata-se de uma nova
esperança de obtenção de células-tronco para fins terapêuticos, e
poderá no futuro representar a esperança de cura para milhares de
afetados por doenças neurodegenerativas, muitas delas letais antes
da segunda década de vida.
Essa pesquisa está sendo publicada num momento extremamente importante no Brasil, em
que se discute um projeto de lei
sobre biossegurança que veta pesquisas com embriões. O projeto
que acaba de ser aprovado pela
Câmara dos Deputados mostra
uma confusão entre três conceitos: a) clonagem reprodutiva; b)
clonagem terapêutica; e c) terapia
celular com células-tronco (que
não é sinônimo de clonagem terapêutica).
Antes da votação do texto definitivo no Senado Federal, é fundamental que os parlamentares
entendam que a terapia celular
com células-tronco, incluindo as
embrionárias, podem representar
a esperança de tratamento para
milhões de brasileiros afetados
por doenças genéticas (que atingem mais de 5 milhões de pessoas, a maioria crianças e jovens),
que sofrem de doenças comuns
como o diabetes e a doença de
Parkinson, ou que estão incapacitados porque sofreram acidentes.
A clonagem reprodutiva humana, que seria a tentativa de produzir uma cópia de um indivíduo, é
condenada por todos. Deve realmente ser proibida.
A clonagem terapêutica ou
transferência de núcleo nada mais
é do que um aprimoramento das
técnicas hoje existentes para culturas de tecidos, que são realizadas há décadas. A vantagem é
que, ao transferir o núcleo de uma
célula de uma pessoa para um
óvulo sem núcleo, esse novo óvulo, ao se dividir, gera células potencialmente capazes de produzir
qualquer tecido em laboratório.
Isso abre perspectivas fantásticas para futuros tratamentos. Seria o caso de reconstituir a medula
de alguém que se tornou paraplégico após um acidente, ou de
substituir o tecido cardíaco em
uma pessoa que sofreu um infarto. Entretanto, no caso de portadores de doenças genéticas, não
seria possível usar as células da
própria pessoa (porque todas têm
o mesmo defeito genético).
Existem células-tronco em vários tecidos (como medula óssea,
sangue e fígado) de crianças e
adultos. Entretanto, a quantidade
é pequena, e não sabemos ainda
em que tecidos elas são capazes de
se diferenciar. A maior limitação
dessa técnica, o autotransplante,
que tem mostrado resultados
promissores em pessoas com insuficiência cardíaca, é que ela
também não serviria para portadores de doenças genéticas.
O sangue do cordão umbilical e
da placenta é rico em células-tronco, mas não sabemos ainda
qual é seu potencial de diferenciação. Se as pesquisas mostrarem
que células-tronco de cordão umbilical serão capazes de regenerar
tecidos ou órgãos, serão sem dúvida a fonte mais importante.
Teríamos de resolver então o
problema de compatibilidade entre as células-tronco do cordão
doador e o receptor. Para isso será
necessário criar, com a maior urgência, bancos de cordão públicos. Quanto maior o número de
cordões em um banco, maior a
chance de achar um compatível.
Se as células-tronco de cordão
não derem os resultados esperados, a alternativa será o uso de células-tronco embrionárias. Elas
podem ser obtidas pela técnica de
transferência de núcleo, como na
pesquisa sul-coreana, ou a partir
de embriões que são descartados
em clínicas de fertilização.
É justo deixar morrer uma
criança ou um jovem afetado por
uma doença neuromuscular letal
para preservar um embrião cujo
destino é o lixo? Um embrião que,
mesmo implantado em um útero,
teria um potencial baixíssimo de
gerar um indivíduo?
Ao usar células-tronco embrionárias para regenerar tecidos em
uma pessoa condenada por uma
doença letal, não estamos na realidade criando vida? Isso não é
comparável ao que se faz hoje em
transplantes, quando se retiram
os órgãos de uma pessoa com
morte cerebral, mas que poderia
permanecer em vida vegetativa?
A maioria dos países da União
Européia, o Canadá, a Austrália, o
Japão e Israel aprovaram pesquisas para obtenção de células-tronco embrionárias obtidas por clonagem terapêutica ou de embriões com até 14 dias. Essa é também a posição das academias de
ciência de 63 países, inclusive a
brasileira.
Muitos acreditam que a vida começa no momento da fertilização.
Entretanto, cientistas da Coréia
acabam de demonstrar que células-tronco pluripotentes podem
ser obtidas sem fertilização. É fundamental que a nossa legislação
também aprove essas pesquisas,
porque elas poderão no futuro
salvar inúmeras vidas.
Mayana Zatz é professora-titular de Genética Humana e Médica no Instituto de
Biociências da USP, coordenadora do
Centro de Estudos do Genoma Humano/IB-USP, presidente da Associação
Brasileira de Distrofia Muscular e membro da Academia Brasileira de Ciências
Texto Anterior: Cientistas recebem a notícia com entusiasmo Índice
|