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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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Ciência em Dia

Patacoadas transgênicas

Marcelo Leite
editor de Ciência

Está difícil ler coisas sérias sobre alimentos transgênicos, contra ou a favor, em particular na imprensa leiga. Na véspera da tardia decisão do Executivo federal sobre a questão, muita gente que pouco ou nada entendia do riscado se meteu a pontificar sobre biotecnologia. Foi chute e lobby para todo lado.
Houve até quem dissesse que os inimigos dos transgênicos os atacam porque provocariam alterações da genética humana, o que constitui um disparate duplo. Para o bem da verdade, registre-se que esse argumento ensandecido nunca foi usado por adversários dos OGMs (organismos geneticamente modificados).
Teme-se pela passagem de transgenes das plantas engenheiradas para ervas daninhas aparentadas (e é bom que se diga que a soja não tem parentes silvestres no Brasil). No máximo, para bactérias do trato intestinal humano, hipótese ainda muito polêmica (o que não impede os mais exaltados de aventá-la, para apavorar um pouco mais o consumidor).
Seres humanos comem há milênios um bocado de DNA (genes) nas células animais e vegetais que ingerem. Nem por isso começaram a mugir, a criar penas ou a fazer fotossíntese. Mesmo crus e vivos, plantas e bichos não têm a capacidade de enxertar os próprios genes em outros organismos, como fazem os vírus.
De vez em quando, porém, o desalento é temperado por algum texto inteligente. É mais provável que isso ocorra numa língua estrangeira, como o inglês. Foi o caso do artigo "Unnatural Selection" (seleção não-natural), de Allison Snow, da Universidade Estadual de Ohio (EUA). Saiu na seção Concepts da revista científica "Nature" (www.nature.com) de 7 de agosto, mas não perderá tão cedo a validade -ao contrário do que há para ler na Terra dos Papagaios. Confira na pág. 619 da publicação científica britânica.
Snow já havia atraído atenção em agosto de 1998, quando uma pesquisa sua mostrou que transgenes inseridos na canola (Brassica napus) se transferiam para ervas daninhas do mesmo gênero, como a Brassica rapa. Pior, o estudo comprovava que a erva daninha continuava bem de saúde depois de assimilar o gene estrangeiro, contrariando previsão dos defensores dos transgênicos de que se tornaria inviável.
Snow não é uma inimiga dos OGMs, mas sim uma cientista. Parte do texto é uma defesa da expressão "geneticamente engenheirado" (GE, em lugar de "geneticamente modificado", GM). Segundo ela, "GE" descreve com mais precisão o que fazem os biólogos moleculares. Exatidão terminológica, como se sabe, é condição essencial da pesquisa científica.
No campo mais programático, Snow afirma no artigo, com todas as letras: "Variedades geneticamente engenheiradas que aumentem colheitas, melhorem a saúde humana e tornem a agricultura mais sustentável devem ser encorajadas". Mas também afirma que "a promessa humanitária dos OGEs está no futuro, mais do que nos produtos hoje usados", e que "os principais riscos da tecnologia ainda estão eles próprios por se manifestar, provavelmente".
Opiniões abalizadas como a de Snow bastam, ou deveriam bastar, para pôr um grão de sal nas afirmações de que há um consenso entre cientistas a favor dos transgênicos. Depende do cientista e depende do transgênico. Mas quem vai se dar ao trabalho de ler o que ela tem para dizer, se a decisão já está tomada e as cabeças, feitas?

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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