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Micro/Macro
Criação ou descoberta?
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Fala-se muito no grande abismo entre
ciência e arte, a primeira lógica, objetiva, enquanto a segunda é intuitiva, subjetiva. O poeta inglês John Keats acusou
seu conterrâneo Isaac Newton de ter
"desfiado o arco-íris" com suas explicações físicas sobre a difração da luz. Ou seja, explicar racionalmente algo de belo
que existe no mundo é insultar a sua
existência, tirar a sua poesia.
É o velho problema das "Duas Culturas", que o escritor e físico inglês C.P.
Snow, em um pronunciamento de 1959,
acusou de estar levando à desintegração
sociocultural, à fossilização da criatividade moderna. Segundo ele, apenas a reintegração das duas culturas levará a humanidade a novas respostas para alguns
de seus maiores desafios.
Um leitor desta coluna me escreveu recentemente pedindo que eu esclarecesse
a distinção entre descoberta e criação.
Mais especificamente, a diferença entre
as duas dentro da ciência.
Nós criamos ou descobrimos a ciência?
Será que as nossas teorias e os nossos
teoremas estão codificados de algum
modo na natureza e tudo o que faz um
cientista é "des-cobri-los", levantar a coberta que os esconde, revelando seu significado? Ou será que os criamos, usando nossa intuição, observação e lógica?
Complicada, essa pergunta. E profundamente ligada à questão das duas culturas. Se fosse prudente, parava por aqui,
citando a minha sábia avó, que dizia que
"criar é coisa de Deus, descobrir é coisa
de gente". Mas por que não tentar inverter isso, fazer do homem criador e não só
criatura? Afinal, descobrir é emocionante, mas bem mais passivo do que criar.
Comecemos pelo "Aurélio". "Criar"
significa dar existência a; dar origem a;
formar; imaginar. "Descobrir" significa
tirar cobertura que ocultava, deixando à
vista; encontrar pela primeira vez; revelar etc. À primeira vista, a distinção entre
as duas culturas está nessas definições.
O artista é o criador, ele ou ela dá existência a algo que não existia, enquanto o
cientista é o descobridor, aquele que revela o significado oculto das coisas, sem
criá-las. Beethoven criou a sua Nona Sinfonia, certo? Ela não existia antes de ele
existir. Já Newton descobriu as três leis
do movimento -elas estavam lá, escondidas na natureza, esperando para serem
reveladas pela mente certa.
Muita gente pode se contentar com essa explicação e dar o caso por encerrado.
Mas eu não. Para mim, a ciência é uma
criação, tão criação quanto uma obra de
arte. O fato de arte e ciência obedecerem
a critérios de validade diferentes, de a
ciência ter uma aceitação baseada no
método científico, que provê meios para
que teorias sejam testadas frente a observações, não muda a minha opinião.
Ciência é criação do homem, fruto de
nossos cérebros e de nosso modo de ver
o mundo. Para entender isso, basta examinarmos um exemplo de sua história.
Aristóteles dizia que a gravidade vinha
da tendência dos corpos de voltarem ao
seu lugar de origem: uma pedra caía no
chão porque foi de lá que ela tinha vindo.
Newton, no século 17, propôs que a gravidade era uma força entre quaisquer
corpos materiais, com intensidade proporcional ao produto de suas massas e
inversamente proporcional ao quadrado
de sua distância. Einstein, em 1916, disse
que a gravidade vem da curvatura do espaço em torno de um corpo maciço, reduzindo-a a um efeito geométrico.
Todas essas teorias foram propostas
para explicar os mesmos fenômenos.
Imagino que Einstein não terá a última
palavra: a gravidade será explicada de
formas diferentes, na medida em que o
conhecimento científico avançar. Junto
com novas tecnologias e novos conceitos
surgem novas representações do mundo
natural. Pode-se descobrir um novo fenômeno, mas sua explicação é criada.
Pensemos agora em uma outra história, a da representação gráfica da crucificação de Cristo. No século 13 era uma
coisa, na Renascença, outra, no século 18,
ainda outra, e no 21, outra completamente diferente. O evento é o mesmo,
mas a sua representação gráfica muda,
porque muda a perspectiva artística. É
perfeitamente razoável para um artista
recriar a crucificação como um amálgama do seu subjetivismo e dos valores culturais da época em que vive. A visão artística está sempre em transformação.
A científica também está. Ciência é
uma construção humana, criada para
que possamos compreender o mundo
em que vivemos. O que se descobre são
novos modos de criar.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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