São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008

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+ Marcelo Gleiser

A nova infância da Terra


Os primeiros 500 milhões de anos não são mais um grande mistério

Sabemos que a Terra tem em torno de 4,5 bilhões de anos e que foi formada junto com os outros planetas do Sistema Solar. O grande matemático francês Pierre Simon de Laplace foi o primeiro a propor um modelo para a formação do Sol e da sua corte de planetas. Usando a mecânica de Newton, Laplace provou que uma esfera de matéria girando e encolhendo devido à sua própria gravidade eventualmente se achataria na forma dum disco com a maior concentração de matéria no centro. Quem faz pizza sabe disso intuitivamente.
Modelos mais modernos, usando computadores, mostram que a formação dos planetas se deve à agregação de partículas de matéria, como quando fazemos bolas de neve: a bola cresce ao agregar mais flocos de neve. (Sei que a imagem não é muito ilustrativa no Brasil, mas está nevando lá fora e não pude resistir.) No caso dos planetas rochosos, partículas microscópicas tornaram-se pedregulhos e estes, ao colidir, começaram a formar proto-planetas. Para os planetas gasosos (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno), matéria como hidrogênio e metano, que mais perto do Sol é volátil, estava congelada. Por isso, esses planetas têm uma composição bem distinta daquela da Terra e dos seus primos rochosos (Mercúrio, Vênus, Marte e asteróides).
O processo de nascimento planetário é bastante caótico. Durante os primeiros 500 milhões de anos, os planetas e as suas luas foram ferozmente bombardeados por asteróides e cometas, detritos do período de formação do sistema solar. Segundo teorias modernas, a própria Lua nasceu devido à uma gigantesca colisão entre a Terra e um proto-planeta do tamanho de Marte, logo no começo.
A visão que temos é de que a Terra era o próprio inferno: colisões com asteróides de 100 km ou 200 km de diâmetro, capazes de evaporar todos os oceanos, eram relativamente comuns.
Nessas condições, a vida seria impossível. Por isso, teorias que procuram explicar a origem da vida especulam seu início em torno de 3,8 bilhões de anos atrás, quando as coisas principiaram a se acalmar: oceanos não evaporaram mais, e as colisões, embora continuassem, já não alteravam completamente o quadro planetário.
A dificuldade com essa explicação é a falta de evidência que temos dos primeiros 500 milhões de anos de vida da Terra. Como dizem os geólogos, a memória do passado terrestre está escrita nas rochas. Se rochas não existiam, ou se eram aniquiladas e derretidas continuamente por colisões devastadoras, não existe memória: os primeiros 500 anos de vida da Terra seriam permanentemente envoltos em mistério, algo que deixa os cientistas com muito incômodo. Felizmente, as coisas estão mudando.
Tudo por causa dos cristais de zircão, os únicos pedaços de matéria disponíveis que datam dos primeiros 500 milhões de anos da Terra e que sobreviveram ao pandemônio. Combinando o elemento zircônio com silício e oxigênio, os cristais ultra-resistentes, incrustados em rochas australianas de 3 bilhões de anos, guardam a memória da mais tenra infância terrestre. Para facilitar ainda mais, os cristais contêm traços do elemento radioativo urânio, permitindo estimar a data de sua formação como tendo sido nos primeiros 200 milhões de anos da Terra.
Traços de isótopos de oxigênio mostram que já existia água em abundância. Análises mostram ainda que a Terra era mais fria do que se pensava.
Apenas em placas continentais tais temperaturas eram possíveis. Uma Terra com água líquida e placas continentais permite a formação da vida bem antes do que 3,8 bilhões de anos atrás. Talvez a vida tenha tido mais tempo do que se pensa para surgir.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"


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