São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008

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+Ciência

No coração da Antártida


Brasileiros escavam gelo a 1.083 km do pólo Sul; expedição pioneira ao interior do continente coleta dados para estudar o clima do passado; Folha vai acompanhar os trabalhos

Grupo terá quase R$ 5 milhões para montar novo instituto; laboratório permitirá analisar gelo no Brasil


MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL A PUNTA ARENAS (CHILE)

A primeira expedição brasileira ao interior da Antártida já retirou mais de 40 metros de cilindros de gelo perto do monte Johns, 2.115 m de altitude, a uma distândia de 1.083 km do pólo Sul. Sob os seus pés há uma camada de cerca de um quilômetro e meio de espessura de gelo azul, neve compactada durante séculos e milênios agora exposta pelo vento, que sublima a camada mais superficial e fofa.
Sua missão sobre esse manto de gelo antártico, nunca antes explorado de modo sistemático por equipes brasileiras, é escavar um testemunho de gelo com até 150 metros de profundidade. Os cilindros retirados na vertical guardam muita informação, selada no interior de microbolhas de ar, sobre a atmosfera e o clima da Terra no passado (no caso, nos últimos 400 ou 500 anos).
Os quatro pesquisadores voaram até o local num avião bimotor turboélice Twin Otter com esquis. Jefferson Cardia Simões, Francisco Aquino e Luiz Fernando Magalhães Reis, todos da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), e Marcelo Cataldo, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), aterrissaram às 13h45 (hora de Brasília) de segunda-feira. Os termômetros marcavam -19C, mas a sensação térmica era de -25C, por força do vento.
Nos próximos dias, a Folha vai acompanhar de perto a expedição, chamada Deserto de Cristal. É a primeira vez que um jornal brasileiro envia repórteres ao interior da Antártida. A reportagem deverá partir de Punta Arenas, extremo sul do Chile, na próxima terça-feira, e retornar no dia 29 -a agenda depende, claro da meteorologia notoriamente variável do continente branco
Na quarta-feira à tarde, falando por telefone (em ligação transmitida diretamente via satélite), Simões informou que a sensação térmica estava na casa dos -30C, mas suportável. "O tempo está bom, tivemos três dias de muito sol", disse.
"Em quatro ou cinco dias chegaremos lá [aos 150 metros de escavação]. Só estamos torcendo para não dar nenhuma tempestade." Os cientistas só contam ali com quatro barracas: dormitório, cozinha, banheiro e "laboratório" -aquela sob a qual os cientistas escavam, protegidos do vento.
O monte Johns fica uns 400 km a oeste do acampamento-base que o grupo montou em 30 de novembro junto aos montes Patriot. Ali está também a base da empresa que transportou a equipe de pesquisadores de Punta Arenas (Chile) a Patriot e depois a Johns, onde o quarteto deve permanecer até quinta-feira.

Terra incógnita
A área em estudo, entre os montes Johns e Woolwards (veja mapa acima, à direita), fica numa das regiões menos conhecidas da Antártida. Segundo Simões, uma equipe científica norte-americana a cruzou no início da década de 1960. Alguns chilenos estiveram lá, por períodos breves.
"É um grande deserto de neve e gelo se estendendo por todo horizonte, ou seja, um verdadeiro deserto de cristal", descreve Simões, por e-mail. As conexões de computador também são feitas por meio de telefones transmitido via satélite.
"Mesmo a palavra "monte" [Johns] é inadequada, pois na verdade só existe um rochedo que atinge 90 metros acima da superfície do gelo. Isso é tudo o que aparece de uma montanha coberta por mais de 1.000 metros de gelo."
São mais de 2.000 km em linha reta de Patriot até a Estação Antártica Comandante Ferraz, ao norte, na ilha Rei George, no arquipélago das Shetlands do Sul, área de atuação do Proantar (Programa Antártico Brasileiro). Essa região, apelidada pelos americanos de "cinturão das bananas", nunca enfrenta as temperaturas de -35C registradas usualmente nos montes Patriot.
As barracas em formato de pirâmide foram montadas ao lado de um módulo de fibra de vidro abandonado por pesquisadores chilenos. O módulo fazia as vezes de escritório e dormitório do chefe da expedição, o glaciologista Simões, antes de sua partida para Johns.
Esta é a 18ª missão de Simões na Antártida. Além de pesquisas em Ferraz, ele já participou de expedições estrangeiras sobre o manto de gelo de até 4 km que cobre a maior parte do continente de 13,8 milhões de km2 (62% maior que o Brasil). A expedição faz parte das ações brasileiras no Ano Polar Internacional 2007-2009 e tem financiamento do Proantar.

Instituto da Criosfera
Simões levou na bagagem antártica uma boa notícia. Foi aprovada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia no final de novembro sua proposta de criar um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, com dotação de R$ 4,8 milhões. O instituto-rede sediado na UFRGS reunirá sete laboratórios de quatro Estados (Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais).
A rede se dedicará ao estudo de diversos componentes da massa de gelo planetária (criosfera), como o gelo marinho, geleiras e manto de gelo antárticos, geleiras andinas, solos congelados (permafrost) e sua resposta a mudanças climáticas. Está prevista a montagem de um laboratório nacional para análise e interpretação de testemunhos de gelo.
O laboratório de 200 m2 a ser instalado na UFRGS terá câmaras frias (-20C) para armazenar e analisar até mil metros lineares de testemunhos de gelo, preservando-os exatamente como forem extraídos. Haverá salas com o mesmo grau de limpeza de laboratórios de chips eletrônicos, para evitar contaminação das amostras. Toda a equipe terá de usar roupas especiais. Custo previsto: R$ 750 mil.

Câmbio gelado
Os testemunhos recolhidos na expedição ao monte Johns, contudo, seguirão para análise na Universidade do Maine (EUA). Cada cilindro de 1 m de comprimento por 7,5 cm de diâmetro será acondicionado em sacos plásticos selados dentro de caixas especiais de isopor, para transporte em câmara fria até os EUA.
O plano inicial era escavar cerca de 300 m de testemunhos: três de até 50 m e um de 150 m a 200 m (capacidade máxima da broca empregada pelos brasileiros). Com a alta do dólar, foi preciso cortar custos, e os três cilindros menores terminaram descartados.


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