São Paulo, quinta-feira, 15 de agosto de 2002

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MEDICINA

Experimento americano sugere alternativa de combate à esterilidade em homens com a ajuda de camundongos

Roedor fabrica espermatozóide de porco

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Primeiro o cientista castra o camundongo. Depois implanta, sob sua pele, um pedaço de testículo extraído de cabrito recém-nascido. Após algumas semanas, sacrifica o roedor e extrai dele espermatozóides caprinos perfeitos.
Pode parecer uma travessura noturna do sr. Hyde no laboratório do dr. Jekyll, mas é só uma pesquisa pioneira, que pode abrir horizontes no tratamento de infertilidade em homens submetidos aos agressivos tratamentos contra o câncer.
Combater um tumor hoje em dia não é brincadeira. Os atuais métodos de combate à doença são muito debilitantes, e muitas vezes a quimioterapia e a radioterapia levam um paciente à esterilidade. Isso pode ocorrer independentemente de onde as células cancerosas estejam localizadas.

Fertilidade preservada
Em geral, quando um paciente vai ser submetido a um tratamento antitumor, é possível manter sua chance de ser pai biológico com a extração de amostras de sêmen e sua preservação criogênica. "Isso é o que é feito atualmente", afirma Nilson Donadio, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo .
Entretanto, quando se trata de um tumor infantil, é possível que o menino ainda não produza espermatozóides. "Para esses casos, atualmente, a possibilidade de esse menino vir a ser pai no futuro é praticamente nula", afirma Agnaldo Cedenho, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A nova pesquisa, na edição de hoje da revista britânica "Nature" (www.nature.com), parece oferecer um caminho para resolver a questão. Ela parte da premissa de que é possível extrair um pedaço de testículo, o maquinário responsável pela produção de espermatozóides, e implantá-lo em um outro animal. Lá, ele amadureceria e se tornaria um órgão funcional, constituindo uma fonte quase inesgotável de espermatozóides com o DNA do paciente prestes a se tornar estéril.
Os cientistas da Universidade da Pensilvânia, nos EUA, testaram essa hipótese implantando pedaços de testículo de camundongos, porcos e bodes sob a pele de outros camundongos. Descobriram, ao dissecar o animal algumas semanas depois da implantação, que o tecido alienígena se desenvolvera a ponto de produzir espermatozóides funcionais.
"Foi surpreendente para nós que os hormônios de camundongo fossem perfeitamente capazes de sustentar a espermatogênese [processo pelo qual se formam os espermatozóides" de porcos e bodes", disse à Folha Ina Dobrinski, uma das autoras do estudo.
Caso a técnica funcione para humanos, poderia tornar-se uma esperança para meninos afetados pelas terapias anticâncer. A direção mais simples seria, em princípio, retirar uma amostra do testículo do paciente, realizar toda a quimioterapia e radioterapia necessária e então reimplantar o tecido no paciente.
Não é incomum a reincidência de tumores, o que voltaria a ameaçar a fertilidade do paciente. O uso de animais como "fábricas" de espermatozóides seria uma solução definitiva. Mas é cedo sequer para dizer que ela funciona, quanto mais para aplicá-la.
"Deixe-me enfatizar que não fizemos esse trabalho em humanos, então tudo é no máximo extrapolação, agora", diz Dobrinski. "Isso tudo é experimental", concorda Cedenho. "Mas o caminho à frente vai nessa direção."

Desafios éticos e médicos
Por mais que o impedimento de ser pai seja frustrante para qualquer um, a técnica pode cobrar um preço muito alto pela manutenção da esperança. "Como com todas as técnicas que envolvem tecido reprodutivo humano e transplantes entre espécies, há questões éticas que precisam ser respondidas", diz Dobrinski.
Além do simples fato de que muitos podem não gostar da idéia de inseminar a mulher com espermatozóide geneticamente humano, mas fabricado no interior de um camundongo, há diversas questões médicas que precisam ser respondidas.
"É preciso muito cuidado com isso", diz Cedenho. "Viroses que num animal não causam mal nenhum podem se tornar mortais se transferidas a humanos", afirma, relembrando alguns dos perigos da mistura de tecidos humanos e animais. Ele aponta, por exemplo, que a versão símia do vírus da Aids pouco faz aos chimpanzés, mas, depois de transferida a humanos, se revelou letal.
Dobrinski concorda: "Obviamente, antes que essa técnica possa ser aplicada a humanos, muitas questões de segurança terão de ser tratadas em estudos animais cuidadosamente conduzidos".
Mesmo fora das fronteiras humanas, a pesquisa é promissora. Dobrinski acredita que o método pode ajudar a preservar espécies ameaçadas de extinção. Mas, acima de tudo, ela acredita em elucidar muitas das dúvidas dos biólogos sobre os processos de formação de células germinativas.
"Eu acho que, apesar das implicações da preservação da fertilidade em humanos e espécies ameaçadas, a técnica terá seu uso imediato maior para o estudo da espermatogênese em diferentes espécies e como uma ferramenta para avaliar os efeitos de substâncias farmacêuticas ou tóxicas em fertilidade masculina."


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