São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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Paleoconcretismo baiano

Fernando Donasci/Folha Imagem
Carlos Etchevarne mostra grupo de desenhos


Arqueólogo recebe meio milhão de reais para mapear e fotografar arte rupestre do Estado, preparando terreno para começar a desvendar o enigma simbólico legado pelos artistas da pré-história

MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL A IRAQUARA (BA)

Ao chegar à boca da Lapa do Sol, uma das muitas entradas de caverna de Iraquara (BA), a ansiedade de Giovani por explicações fica evidente. Numa inversão de papéis, é o guia turístico que criva o visitante de perguntas: As pinturas vermelhas são mesmo feitas com urucum? O círculo no teto do abrigo representa o Sol, um calendário ou uma mandala? Está confirmado que a sucessão de tracinhos verticais vermelhos ao longo de vários metros da parede constitui uma contagem de dias? Há quantos anos foram feitos os desenhos?
Carlos Etchevarne, 56, começa a responder a maioria das questões com um sutil movimento horizontal da cabeça, como que a preparar o interlocutor para a frustração de suas expectativas. Não, todos os pigmentos usados são minerais -no caso do vermelho, hematita, um óxido de ferro. Não, não há como fundamentar as populares interpretações astronômicas das figuras geométricas. Não, as pinturas rupestres da Chapada Diamantina ainda não foram datadas.
Talvez Giovani tenha saído decepcionado de seu contato-relâmpago com a ciência, na última segunda-feira, mas obteve ao menos a confirmação de que alguns desenhos da Lapa do Sol são, de fato, falsos: imitações recentes que somente o olho treinado do arqueólogo da Universidade Federal da Bahia pode identificar com relativa facilidade. Tão falsas quanto a pilha de ossos delimitada por duas pedras, bem no meio do abrigo rochoso.
Etchevarne, nascido na Argentina, emigrado para a Itália e depois para o Brasil, tornou-se uma quase celebridade na região. Todos o consultam como a um oráculo. Embora já circule pelos abrigos e cavernas de Iraquara e Lençóis desde 1998, seu prestígio deu um salto neste ano com o resultado da terceira edição do Prêmio Clarival do Prado Valladares: R$ 532.400,00 para o projeto "Homem e Natureza - Imagens da Arte Rupestre na Bahia".
O pesquisador tem agora um ano para dar os primeiros passos de uma pesquisa científica organizada nas muitas dezenas de sítios arqueológicos baianos. Até o mês que vem ele faz um levantamento preliminar de sítios existentes, para então iniciar o trabalho de registro dos painéis de rocha pintados. No passo seguinte, selecionará os motivos mais representativos, que serão então fotografados por um profissional, já com vistas à produção de um livro a ser editado pela Odebrecht, patrocinadora do prêmio.

Buraco negro
Embora sejam conhecidas, documentadas e comentadas -além de vandalizadas- há pelo menos dois séculos, as abundantes pinturas rupestres da Bahia encontram-se numa espécie de buraco negro científico. Pouco ou nada se sabe sobre elas. É um panorama bem diferente do da Serra da Capivara, no Piauí, onde trabalha há décadas a arqueóloga Niède Guidon -sob cuja liderança surgiu um dos mais organizados parques nacionais do Brasil.
Existem 68 sítios com arte rupestre identificados no Estado, segundo levantamento feito há uma década. Cerca de metade se encontra na Chapada Diamantina. A todo momento surgem novos locais, como Cinzeiro, identificado pelo próprio Etchevarne. Moradores, geólogos e espeleólogos são as fontes de informação. Muitos se encontram a oeste e ao sul, fora da chapada, mas é nela, em Iraquara e arredores, que o arqueólogo concentra por ora suas atenções.
Afinal, trata-se de um padrão de ocupação muito especial, a dos homens e mulheres pré-coloniais que Etchevarne chama de "dolineiros". Seus abrigos preferidos se encontram na base de dolinas, antigas cavernas desabadas, ou seja, fruto de um duplo processo de destruição operada pelo tempo. A Chapada Diamantina, que já esteve no fundo do mar, foi soerguida por processos tectônicos, trazendo para a superfície rochas calcárias. Elas são dissolvidas pela lenta penetração de água, que escava grutas e nelas esculpe estalactites e estalagmites. Algumas dessas cavidades acabam por colapsar, abrindo buracos na paisagem aplainada do topo da chapada -as dolinas.
No alto da chapada predomina um clima semi-árido, com precipitações de pouco mais de 600 mm anuais, e vegetação limítrofe entre caatinga e cerrado. No fundo da dolina, porém, verifica-se um microclima mais úmido, com afloramentos do lençol freático. Assim como atraem os agricultores de hoje, as dolinas também atraíram os povos de milhares de anos atrás, pela presença de abrigos naturais, água, árvores frutíferas e caça. Em alguns casos, até mesmo riachos e rios com peixes -como se suspeita que tenha sido o caso no sítio Torrinha, onde abundam motivos pisciformes entre as pinturas, raros nos outros locais.
Por razões que Etchevarne ainda não sabe explicar, os dolineiros só pintavam abrigos, ou seja, a entrada das cavernas. Não se encontram desenhos nas suas profundezas. Como nem uns nem outras foram ainda sistematicamente escavados, não se pode afirmar com certeza que só os abrigos eram ocupados. Em uns poucos locais, como Morro do Chapéu, há pinturas em abrigos mais elevados, fora de dolinas.

Tradições
Ocorrem na região exemplares de todas as três grandes tradições nordestinas de arte rupestre: Nordeste (muitas figuras humanas em movimento, como na Serra da Capivara), Agreste (figuras humanas e de animais, maiores e mais esquematizadas) e São Francisco (predomínio de grafismos). A maioria das figuras é monocromática, em vermelho (hematita), preto (pasta de carvão) e, mais raramente, amarelo (limonita, outro óxido de ferro). Mas alguns motivos, como o "Sol" e o "Cometa" da Lapa do Sol, chegam a usar três e até quatro cores.
Etchevarne mantém distanciamento prudente diante de explicações astronômicas para esses desenhos, como as que foram avançadas pela arqueóloga Maria da Conceição Beltrão, do Museu Nacional do Rio de Janeiro. O próprio pesquisador, mesmo dizendo que não há como fundamentar o que chama de "interpretações culturais" das figuras, assinala o fato de ambas se encontrarem no teto do abrigo, e não nas paredes, como a maioria das outras. "A arqueoastronomia é uma boa linha de pesquisa", admite.
Antes de se aventurar por ela, no entanto, ele elegeu o trabalho de formiga operária: mapear, documentar, fotografar, comparar, analisar. A partir daí, buscar entender a "gramática" desses artistas intrigantes. Quem sabe, um dia, possa dizer a Giovani por que cargas d'água -ou modos de pensar- eles se dedicavam com tanto afinco, nas dolinas de Iraquara, a preencher com sucessões de figuras a pauta natural oferecida pela intercalação de camadas de argilitos e carbonatos.


O colunista Marcelo Leite viajou a Iraquara (BA) a convite da organização Odebrecht


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