|
Texto Anterior | Índice
Paleoconcretismo baiano
Fernando Donasci/Folha Imagem
|
Carlos Etchevarne mostra grupo de desenhos |
Arqueólogo recebe meio milhão de reais para mapear e fotografar arte rupestre do Estado, preparando terreno para começar a desvendar o enigma simbólico legado pelos artistas da pré-história
MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL A IRAQUARA (BA)
Ao chegar à boca da
Lapa do Sol, uma
das muitas entradas de caverna de
Iraquara (BA), a ansiedade de Giovani por explicações fica evidente. Numa inversão de papéis, é o guia turístico
que criva o visitante de perguntas: As pinturas vermelhas são
mesmo feitas com urucum? O
círculo no teto do abrigo representa o Sol, um calendário ou
uma mandala? Está confirmado que a sucessão de tracinhos
verticais vermelhos ao longo de
vários metros da parede constitui uma contagem de dias? Há
quantos anos foram feitos os
desenhos?
Carlos Etchevarne, 56, começa a responder a maioria das
questões com um sutil movimento horizontal da cabeça,
como que a preparar o interlocutor para a frustração de suas
expectativas. Não, todos os pigmentos usados são minerais
-no caso do vermelho, hematita, um óxido de ferro. Não, não
há como fundamentar as populares interpretações astronômicas das figuras geométricas.
Não, as pinturas rupestres da
Chapada Diamantina ainda
não foram datadas.
Talvez Giovani tenha saído
decepcionado de seu contato-relâmpago com a ciência, na última segunda-feira, mas obteve
ao menos a confirmação de que
alguns desenhos da Lapa do Sol
são, de fato, falsos: imitações
recentes que somente o olho
treinado do arqueólogo da Universidade Federal da Bahia pode identificar com relativa facilidade. Tão falsas quanto a pilha de ossos delimitada por
duas pedras, bem no meio do
abrigo rochoso.
Etchevarne, nascido na Argentina, emigrado para a Itália
e depois para o Brasil, tornou-se uma quase celebridade na
região. Todos o consultam como a um oráculo. Embora já
circule pelos abrigos e cavernas
de Iraquara e Lençóis desde
1998, seu prestígio deu um salto neste ano com o resultado da
terceira edição do Prêmio Clarival do Prado Valladares: R$
532.400,00 para o projeto "Homem e Natureza - Imagens da
Arte Rupestre na Bahia".
O pesquisador tem agora um
ano para dar os primeiros passos de uma pesquisa científica
organizada nas muitas dezenas
de sítios arqueológicos baianos. Até o mês que vem ele faz
um levantamento preliminar
de sítios existentes, para então
iniciar o trabalho de registro
dos painéis de rocha pintados.
No passo seguinte, selecionará
os motivos mais representativos, que serão então fotografados por um profissional, já com
vistas à produção de um livro a
ser editado pela Odebrecht, patrocinadora do prêmio.
Buraco negro
Embora sejam conhecidas,
documentadas e comentadas
-além de vandalizadas- há pelo menos dois séculos, as abundantes pinturas rupestres da
Bahia encontram-se numa espécie de buraco negro científico. Pouco ou nada se sabe sobre
elas. É um panorama bem diferente do da Serra da Capivara,
no Piauí, onde trabalha há décadas a arqueóloga Niède Guidon -sob cuja liderança surgiu
um dos mais organizados parques nacionais do Brasil.
Existem 68 sítios com arte
rupestre identificados no Estado, segundo levantamento feito
há uma década. Cerca de metade se encontra na Chapada Diamantina. A todo momento surgem novos locais, como Cinzeiro, identificado pelo próprio
Etchevarne. Moradores, geólogos e espeleólogos são as fontes
de informação. Muitos se encontram a oeste e ao sul, fora da
chapada, mas é nela, em Iraquara e arredores, que o arqueólogo concentra por ora
suas atenções.
Afinal, trata-se de um padrão
de ocupação muito especial, a
dos homens e mulheres pré-coloniais que Etchevarne chama
de "dolineiros". Seus abrigos
preferidos se encontram na base de dolinas, antigas cavernas
desabadas, ou seja, fruto de um
duplo processo de destruição
operada pelo tempo. A Chapada Diamantina, que já esteve no
fundo do mar, foi soerguida por
processos tectônicos, trazendo
para a superfície rochas calcárias. Elas são dissolvidas pela
lenta penetração de água, que
escava grutas e nelas esculpe
estalactites e estalagmites. Algumas dessas cavidades acabam por colapsar, abrindo buracos na paisagem aplainada do
topo da chapada -as dolinas.
No alto da chapada predomina um clima semi-árido, com
precipitações de pouco mais de
600 mm anuais, e vegetação limítrofe entre caatinga e cerrado. No fundo da dolina, porém,
verifica-se um microclima mais
úmido, com afloramentos do
lençol freático. Assim como
atraem os agricultores de hoje,
as dolinas também atraíram os
povos de milhares de anos
atrás, pela presença de abrigos
naturais, água, árvores frutíferas e caça. Em alguns casos, até
mesmo riachos e rios com peixes -como se suspeita que tenha sido o caso no sítio Torrinha, onde abundam motivos
pisciformes entre as pinturas,
raros nos outros locais.
Por razões que Etchevarne
ainda não sabe explicar, os dolineiros só pintavam abrigos, ou
seja, a entrada das cavernas.
Não se encontram desenhos
nas suas profundezas. Como
nem uns nem outras foram ainda sistematicamente escavados, não se pode afirmar com
certeza que só os abrigos eram
ocupados. Em uns poucos locais, como Morro do Chapéu,
há pinturas em abrigos mais
elevados, fora de dolinas.
Tradições
Ocorrem na região exemplares de todas as três grandes tradições nordestinas de arte rupestre: Nordeste (muitas figuras humanas em movimento,
como na Serra da Capivara),
Agreste (figuras humanas e de
animais, maiores e mais esquematizadas) e São Francisco
(predomínio de grafismos). A
maioria das figuras é monocromática, em vermelho (hematita), preto (pasta de carvão) e,
mais raramente, amarelo (limonita, outro óxido de ferro).
Mas alguns motivos, como o
"Sol" e o "Cometa" da Lapa do
Sol, chegam a usar três e até
quatro cores.
Etchevarne mantém distanciamento prudente diante de
explicações astronômicas para
esses desenhos, como as que foram avançadas pela arqueóloga
Maria da Conceição Beltrão, do
Museu Nacional do Rio de Janeiro. O próprio pesquisador,
mesmo dizendo que não há como fundamentar o que chama
de "interpretações culturais"
das figuras, assinala o fato de
ambas se encontrarem no teto
do abrigo, e não nas paredes,
como a maioria das outras. "A
arqueoastronomia é uma boa
linha de pesquisa", admite.
Antes de se aventurar por ela,
no entanto, ele elegeu o trabalho de formiga operária: mapear, documentar, fotografar,
comparar, analisar. A partir daí,
buscar entender a "gramática"
desses artistas intrigantes.
Quem sabe, um dia, possa dizer
a Giovani por que cargas d'água
-ou modos de pensar- eles se
dedicavam com tanto afinco,
nas dolinas de Iraquara, a
preencher com sucessões de figuras a pauta natural oferecida
pela intercalação de camadas
de argilitos e carbonatos.
O colunista Marcelo Leite viajou a Iraquara (BA)
a convite da organização Odebrecht
Texto Anterior: +Marcelo Leite: Freezers no corredor Índice
|