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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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Ciência em dia

C&T de Lula começa mal

Marcelo Leite
editor de Ciência

A cena do ministro de robe, no quarto de hospital, só não pareceu mais constrangedora que a dos garçons com paletós brancos e gravatas-borboleta em meio à canícula nordestina, servindo água gelada para a turma de Brasília. No segundo caso, faltou ao organizador da viagem do presidente Lula o bom senso para concluir que, ao menos entre pobres do Piauí, o primeiro escalão poderia servir-se de água com as próprias mãos. No primeiro, foi o próprio responsável pela pasta de Ciência e Tecnologia (C&T) que forçou a multiplicação das entrevistas de esclarecimento ainda antes de receber alta, para tentar controlar a crise política internacional que deflagrara pouco antes com declarações imponderadas sobre tecnologia nuclear.
O episódio seria apenas bom candidato para os anais do folclore político brasileiro, na rubrica da inexperiência ministerial, não fosse um sintoma eloquente da desimportância que o tema vinha adquirindo na administração do PT. Já de cara, põe a descoberto para quem quiser ver a escassa familiaridade do escolhido para a vaga com os temas de sua área.
Escolhido? Nem tanto. Tão cioso das pastas de óbvia relevância econômica e social, o presidente Lula -ao delegar para um sócio menor da coligação que o elegeu a indicação do ministro de C&T- parece indicar que não atribui ao setor nem uma coisa nem outra. Corrobora, com a atitude, a suspeita de que leva ao Planalto, além das boas intenções ungidas por mais de 50 milhões de votos, um projeto defasado de desenvolvimento social -se é que leva de fato algum projeto articulado, merecedor do nome.
Fala-se tanto em economia do conhecimento, na inovação como chave do crescimento sustentado, na tecnologia como principal força produtiva do capitalismo avançado... Na hora inaugural de um governo que se pretende transformador, porém, o que se vê é um senhor em trajes domésticos enrolado com explicações do alcance de suas palavras de manifesta inspiração nacionalista.
Em tempo: o ministro tem todo direito a uma opinião política pessoal sobre bombas atômicas e sobre o Tratado de Não-Proliferação, ou sobre alimentos transgênicos e clonagem, mas precisa levar em conta, antes de emiti-la, que será vista também em sentido programático, como possível orientação de governo.
Mais oportuno seria o titular de C&T ter provocado as inúmeras entrevistas para esclarecer o que pensa dos temas e idéias debatidos no grupo da equipe de transição que se dedicou ao assunto. Por exemplo, se também considera necessário alterar o arcabouço institucional montado pela administração de Fernando Henrique Cardoso para gerir as verbas carreadas para os vários fundos setoriais, a principal inovação de Ronaldo Sardenberg à frente do MCT. Ou ainda, o que pretende fazer para contrapor-se ao continuísmo financeiro-economicista, que já trabalha com o contingenciamento (bloqueio) neste ano de quase 50% dos recursos dos fundos setoriais - paradoxalmente, criados para garantir fluxo contínuo de sustentação à pesquisa.
 
O leitor terá notado que o nome do novo ministro de C&T foi omitido ao longo de todo o texto. As razões são duas. Primeiro, evidenciar que as observações não são de caráter pessoal, mas institucional. Depois, para propor um teste: pergunte a seus amigos e parentes quem sabe o nome e o partido do novo ministro da Ciência e Tecnologia -e reze para que a ignorância patenteada não se torne a marca do governo Lula no campo da ciência e da tecnologia.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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