São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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Periscópio
Linguagem dos neandertais

José Reis
especial para a Folha

Os fósseis dos hominídeos que viviam há 500 mil anos já associavam às características do Homo erectus algumas feições especiais que iriam implantar a morfologia de uma nova espécie, o Homo sapiens. Muitos especialistas chamam essas formas de transição do Pleistoceno Médio (700 mil a 125 mil anos passados) de H. sapiens arcaico.
Esse Homo arcaico teria originado na África, e talvez no Oriente Médio e no Extremo Oriente, o homem moderno, ou Homo sapiens sapiens, cujos fósseis mais antigos datam de 100 mil anos, ou, segundo alguns, 200 mil anos.
As formas de transição que chegaram à Europa, provavelmente vindas da África por meio do Oriente Médio, teriam originado ali, segundo a maioria dos autores, um grupo diferente, o Homo sapiens neanderthalensis, cujos ossos foram pela primeira vez identificados em 1856 na Alemanha (vale do Neander). Esse grupo durou até 35 mil anos atrás.
A sua descoberta provocou muitos estudos e especulações. Entre estas, uma das mais debatidas é a de saber se aquela forma era dotada de linguagem oral fluente. Se o fosse, poderia facilmente comunicar-se e cruzar-se com seus contemporâneos Cro-Magnons, nossos antepassados providos dessa capacidade. Mas essa questão da fala dos neandertais não se resolveu até hoje e ganhou intensidade na década de 70, quando Philip Lieberman, da Brown University, e Edmund Crelin, da Yale, defenderam a noção de que a língua e a laringe dos neandertais não apresentavam disposição favorável à linguagem moderna complexa.
Os neandertais, e em particular sua potencialidade de falar, foram objeto de aceso debate em 1932 na reunião anual da American Association for the Advancement of Science, onde David Frayer, da Universidade de Kansas, apresentou levantamento minucioso dos dados sobre aqueles fósseis, como a então recente descoberta de osso hióide (que fica acima da laringe) igual ao do homem moderno. Essa peça nunca havia sido encontrada nos fósseis daquela época. Apresentou também uma reconstrução do crânio do homem da Chapelle-aux-Saints, no Sul da França. Essa reconstrução serviria de prova de que os neandertais falavam. Em face disso e de outros documentos, Frayer concluiu que os neandertais tinham o dom da palavra.
Os principais opositores de Frayer são Jeffrey Laitman, da Mt. Sinai School of Medicine, e Liberman e Crelin, que descobriram que se pode usar a forma da base do crânio para predizer a estrutura do trato vocal. Uma base craniana chata estaria associada à combinação de laringe alta e forma da língua que impediria a fala moderna. Um dos fósseis mais importantes desse grupo é o da Chapelle-aux-Saints, que nos estudos de Laitman seria incapaz de pronunciar certas vogais sem cuja participação a fala fluente seria impossível. Esse fóssil, observou Laitman, tinha a base do crânio chato.
Um dos trunfos de Fryer é a reconstrução desse crânio feita com a colaboração de Jean-Louis Heim, do Museu de História Natural de Paris, porque ela revela que a base do crânio era inclinada e não chata, pondo o neandertal estudado entre os "fósseis falantes". Os estudos de Laitman foram feitos em crânios fósseis e atuais. Além de sua posição favorável à fala dos neandertais, Frayer sustenta que eles foram ancestrais do homem moderno. Para Heim, os neandertais constituem espécie distinta.
Laitman, Lieberman e Crelin contestam a validade da reconstrução craniana de Heim e acham que a descoberta do osso hióide não tem maior significação, ao menos por enquanto. Pelo que se vê, o debate em torno da fala dos neandertais está longe de encerrado.



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