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Micro/Macro
Em defesa da ciência básica
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Volta e meia, em cartas de leitores
desta coluna ou em palestras abertas ao público, sou criticado por dedicar-me ao estudo de questões básicas da
ciência e não a problemas mais imediatos que afligem a humanidade, como a
fome, as doenças, a poluição, entre outros. O argumento, que tem as melhores
intenções, é mais ou menos o seguinte:
os cientistas deveriam ajudar a melhorar
a qualidade de vida, e não perder tempo
com o que acontece perto de um buraco
negro, com o funcionamento das estrelas, com as partículas fundamentais da
matéria ou com a compreensão da origem do Universo. Por que cientistas
"perdem tempo" com questões tão removidas do nosso dia-a-dia quando eles
poderiam estar tentando desenvolver
novas curas para a Aids ou o câncer ou
controlando o buraco da camada de ozônio? Será que não sentem uma obrigação
ética de usar seus talentos para ajudar
aos outros?
Dada a importância da questão, acho
que vale a pena elaborar o que poderia
chamar de "apologia da ciência básica".
Antes de mais nada, é importante definir
o que é ciência básica, algo não tão simples. Ao distinguirmos ciência básica de
ciência aplicada, estamos supondo que
ela trata de questões que não estão diretamente ligadas a aplicações imediatas,
como a criação de novas tecnologias. O
problema com essa definição, que reflete
parte da confusão causada por meus críticos (e de todos os outros cientistas básicos), é que é muito difícil prever se questões que agora parecem tão esotéricas
irão encontrar aplicações práticas no futuro. Como ilustração, cito o desenvolvimento da mecânica quântica, que estuda
o mundo dos átomos e moléculas. Quando cientistas como Planck, Einstein,
Bohr e Heisenberg tentavam entender o
comportamento do átomo no início do
século, eles jamais poderiam imaginar
que de suas investigações brotaria uma
revolução tecnológica que transformou
o mundo. Desse questionamento básico
emergiram invenções como transistores,
semicondutores e laseres, que dominam
nossa realidade plena de computadores,
fibras óticas, telefones celulares etc. E foi
do estudo da física atômica que foram
descobertas radiações como o raio X,
que revolucionou a medicina e que, por
sua vez, ajudou outras revoluções, como
a da biologia molecular e a da genética.
Julgar a ciência básica a curto prazo cria a
falsa idéia de que especulações teóricas
jamais poderão ser relevantes na prática,
sejam sobre átomos ou sobre estrelas.
Outro ponto importante é o número
de cientistas que se dedicam à ciência básica, contra os que trabalham em pesquisa aplicada. Sem a menor dúvida, físicos
trabalhando em áreas mais teóricas são
minoria absoluta. Apesar de não ter dados exatos, arriscaria que eles não passam de 10% a 20% dos físicos trabalhando em universidades e indústrias. Mais
ainda, é injusto supor que mesmo os físicos ou os matemáticos trabalhando em
assuntos esotéricos não se "importem"
com os problemas do mundo. Será que
devemos fazer a mesma crítica a banqueiros, a escritores, a comerciantes ou a
motoristas de táxi? Não só a maioria desses cientistas leciona em universidades,
educando centenas de jovens por ano,
como muitos deles têm atividades paralelas, ligadas à preservação do ambiente
(caso deste colunista) ou à preservação
da democracia neste e em outros países.
Ofereço um último argumento. A humanidade precisa de pelo menos alguns
sonhadores, daqueles indivíduos que
criam novas visões de mundo por meio
de suas fantasias, sejam elas artísticas ou
intelectuais. Um quadro não ajuda a
combater a fome, mas ajuda a criar uma
estética que nos eleva acima da trivialidade diária, que nos ajuda a expandir nossos horizontes. Uma teoria nova sobre a
origem do Universo também. São poucos os pintores e astrofísicos deste mundo. E, por eles existirem, o mundo é um
lugar mais especial. Precisamos ter a generosidade de criar um mundo onde
pintores, astrofísicos, banqueiros, comerciantes e motoristas de táxi possam
todos voltar a sua atenção para os problemas que afligem a humanidade. Cada
um de nós deve pensar globalmente e
atuar localmente, cientistas ou não.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "Retalhos Cósmicos".
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