São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

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+ ciência

Trabalho de casal de brasileiros está na origem das vacinas mais promissoras para prevenir a doença

Aliança contra a malária

Science
Detalhe do mosquito Anopheles gambiae, transmissor da malária


RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Eles namoravam pelos corredores da Faculdade de Medicina da USP, na avenida Doutor Arnaldo, na zona oeste de São Paulo. Falavam de ciência, e começavam a fazê-la, no começo dos anos 1960. Foram para a New York University, praticamente expulsos pelo golpe de 64. E, aos 76 anos de idade, continuam namorando, falando de -e fazendo- ciência de primeira linha cerca de quatro décadas depois.
Isso acontece para sorte de alguns bilhões de pessoas que vivem em áreas afetadas pela malária, a pior das doenças da pobreza, rival da Aids em mortandade.
Nas últimas semanas, esses dois pesquisadores, que podem ser definidos como o "casal 10" da ciência brasileira, Ruth e Victor Nussenzweig, estiveram sorrindo pelos corredores da universidade americana que os acolheu. E não é só quando trocam olhares ainda apaixonados -algo que o repórter presenciou, ao vivo e em cores, em Natal (RN), no começo do ano.
Os dois são sem dúvida os dois mais importantes pesquisadores brasileiros sobre malária, e estão entre os principais do mundo. Recentes resultados de pesquisa, tanto clínica, como de "ciência pura", indicam que eles estavam e estão certos na convicção de que é possível criar uma vacina contra a doença que mata um milhão de pessoas por ano, a maioria crianças africanas.
O ponto de partida foi um artigo de Ruth e outros colegas publicado na revista científica britânica "Nature" em 1967. Eles demonstraram em animais de laboratório que era possível obter proteção contra o parasita causador da malária por meio da irradiação do micróbio.
O parasita do gênero Plasmodium, um ser unicelular, é transmitido pela picada das fêmeas de mosquitos do gênero Anopheles. O plasmódio entra na corrente sangüínea, afeta células do sangue e depois vai ao fígado. Toma várias formas, até voltar ao sangue e poder ser de novo captado pelo mosquito, e entrar em novo ciclo dentro do inseto antes de infectar outra pessoa.
Uma vacina funciona fazendo o organismo reconhecer o potencial inimigo -um vírus, uma bactéria, um parasita unicelular- e agir contra ele, produzindo anticorpos e mediando a ação de células de defesa. Para isso, é preciso usar seja uma versão atenuada (pela irradiação, por exemplo) do agente causador da doença, seja um "pedaço" dele que faça o organismo reagir sem causar a enfermidade.
Não foi possível fazer em seres humanos o mesmo que havia sido feito com camundongos. Mas começou aí o esforço de se criar uma vacina. O casal Nussenzweig depois estudou o potencial para vacinas de uma proteína na superfície do parasita causador da malária.

Moda
Essa idéia de usar "pedaços" do plasmódio para criar vacinas virou moda. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), hoje existem 25 "candidatas a vacina" em teste baseadas em "subunidades", a maioria ainda na fase inicial, de averiguação de segurança e potencial de agir no sistema imunológico (de defesa) do organismo.
Em outubro passado, uma equipe internacional obteve um êxito raro com uma dessas vacinas. Conhecida pela sigla RTS,S/ AS02A, a vacina experimental foi desenvolvida por uma indústria farmacêutica britânica, a GlaxoSmithKline, junto com o Instituto de Pesquisa Walter Reed do Exército dos EUA.
A imunização foi testada em milhares de crianças em Moçambique. Ela conseguiu reduzir os ataques de malária em 58% dos casos graves.
"Não é ideal, mas é um grande avanço", disse Victor Nussenzweig, em entrevista por telefone. A vacina foi particularmente útil por ter protegido contra os casos mais graves, mais matadores, da doença. "Isso nunca foi conseguido antes", diz o pesquisador, exultante.
Uma coisa é conseguir uma proteção 100% contra a malária. É o que seria ideal para visitantes -sejam eles turistas, sejam eles soldados dos Estados Unidos (o que explica o tradicional interesse dos militares americanos pelo tema).
Mas mesmo proteções mais baixas seriam úteis no continente africano. As infecções são ali constantes, as picadas de mosquito, contínuas. Adolescentes e adultos sobreviventes têm razoável proteção; mas crianças, especialmente as mais novas, são bem mais vulneráveis.
A outra recente descoberta que fez o casal sorrir foi publicada neste mês na mesma revista científica "Nature" (www.nature.com) onde saíra o pioneiro artigo de Ruth em 1967.
Pesquisadores na Alemanha criaram parasitas geneticamente modificados, removendo um gene que ele necessita para passar para outra fase da infecção. Camundongos que receberam esses parasitas modificados conseguiram obter imunidade contra o plasmódio normal.
"Nós estamos ainda longe de conseguir uma vacina eficiente. Neste estágio, o melhor que nós podemos fazer é ter um grande portfólio de opções de vacina", disse em entrevista Kai Matuschewski, da Universidade de Heildelberg. Kai e o colega Stefan Kappe fizeram parte do trabalho no laboratório de Victor.
Segundo Matuschewski, vacinas feitas de "pedaços" do parasita, as "subunidades", e outras usando o organismo inteiro, devem ser vistas hoje mais como complementares do que como competidoras.
Pois, no fundo, a questão básica é como fazer o organismo criar uma reação de fato protetora, em vez de meramente reativa ao parasita.
Em um artigo publicado em agosto passado, também na "Nature", em uma seção especial sobre malária, o pesquisador Stephen Hoffman afirmou que para o combate à doença ser bem sucedido, seria preciso combinar três estratégias de vacina.

"Altruísmo"
As estratégias têm a ver com diferentes fases da infecção. O trabalho começaria com a contenção dos "esporozoítos", a forma do parasita quando este entra no corpo. Depois, seria necessário limitar a invasão das células sangüíneas, um passo fundamental na infecção e que precede a migração dos parasitas para o fígado. E, por último, seria o caso de achar um meio de bloquear a transmissão, algo que os pesquisadores chamam de "vacina altruísta", pois evitaria o contágio de terceiros.
Curiosamente, Hoffman criou uma empresa para desenvolver uma vacina com o parasita atenuado por radiação, o que logo faz lembrar do pioneiro trabalho de Ruth Nussensweig e colegas de 1967.
Vencer a malária envolverá uma estratégia elaborada, não só de ciência, como de saúde pública. Além de vacinas, é importante usar redes mosquiteiras, repelentes, e ter novos medicamentos à disposição, para driblar a resistência do parasita. Mas para uma resposta final ao problema, só mesmo uma vacina. E dois brasileiros estão entre os cientistas que mais fizeram nessa área.


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