São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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CIÊNCIA
O homem moderno descende de sobreviventes de megacatástrofe, diz estudo
Seleção vulcânica

MARCELO LEITE
especial para a Folha

O homem moderno é uma criação recente da evolução, coisa de 100 mil a 200 mil anos. Parecia um mistério que, em tão pouco tempo, tivesse surgido tanta diferença na aparência de populações da África, Eurásia e Oceania, como a cor da pele. A resposta, afirma nova teoria, pode estar numa das maiores erupções vulcânicas da história do planeta.
O autor da hipótese é Stanley Ambrose, 45, arqueólogo da Universidade de Illinois (nordeste dos EUA). Ele propôs que a megaerupção do monte Toba, na ilha de Sumatra (hoje território indonésio), há 71 mil anos, dizimou a maioria das populações humanas.
No máximo 10 mil pessoas teriam sobrevivido ao "inverno vulcânico", que quase zerou o relógio genético da espécie. E ele costuma andar mais depressa depois de uma catástrofe dessas.
Foi a segunda maior erupção em meio bilhão de anos, superada apenas por uma que lançou na atmosfera o equivalente a 1.140 km3 de rochas, sob a forma de cinzas e poeira. No caso do monte Toba, a estimativa é de 800 km3. No fundo do oceano Índico, ele deixou uma camada de cinzas de 12 cm.
As partículas e gases lançados na atmosfera, se alcançam altitudes acima de 17 km, como no caso de Toba, formam uma nuvem que barra a maior parte da radiação solar (veja quadro ao lado). A temperatura cai abruptamente, dando início a um inverno prolongado. Na década de 80, especulava-se que uma guerra nuclear poderia ter efeito semelhante e dizimar a maior parte da população.
A hipótese Ambrose é comparável em ousadia à de Luis Walter Alvarez, Nobel de Física de 1968, que, em 1981, propôs que os dinossauros foram extintos pelo choque de um asteróide contra a Terra. A comparação, aliás, é feita pelo próprio Stanley Ambrose.
"Isso ainda terá de ser submetido a maior escrutínio antes que sua durabilidade possa ser avaliada. Não espero aceitação rápida. A julgar pelo tempo que a idéia asteróide/extinção dos dinossauros ficou rolando por aí, pode demorar muito até que apareça o veredicto final", afirmou o cientista, por correio eletrônico.
Seria um caso de imodéstia, não fosse pela opinião de outros pesquisadores. O artigo de Ambrose saiu no "Journal of Human Evolution", cujos textos, como em toda publicação científica respeitável, passam por uma revisão técnica anônima ("peer review").
No Brasil, o arqueólogo Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP, concorda em princípio com a pretensão do norte-americano: "Se ele estiver certo, vai ter mesmo repercussão comparável a Alvarez".

Genética e raças
O ovo que Ambrose pôs de pé reúne evidências tão díspares quanto clara e gema. De um lado, a megaerupção do monte Toba, esmiuçada por vulcanologistas. De outro, a teoria do gargalo, produto recente da genética de populações, um tópico que, segundo Walter Neves, tornou-se realmente quente nos últimos dois anos.
Analisando a diversidade dos genes da espécie no presente e sua distribuição, geneticistas concluíram que ela passou por ao menos uma drástica redução populacional, há não mais que 100 mil anos.
Seria a melhor maneira de explicar por que só se observa 10% da diversidade genética entre as diferentes "raças". Os outros 90% ocorrem dentro de cada uma delas, ou seja, há muito mais variação entre membros de um mesmo grupo racial -em particular na África- do que entre os grupos.
Em aparência, contudo, os grupos diferem muito. Isso decorreria, na hipótese de Ambrose, do fato de o gargalo ter ocorrido antes de uma nova dispersão pelo globo (veja ilustração). Várias linhagens iniciadas com a emigração do Homo erectus (precursor do Homo sapiens, o homem atual) da África teriam morrido na súbita queda de temperatura na Terra.
Para Ambrose, os sobreviventes do inverno vulcânico foram mais numerosos no grande refúgio tropical africano (não havia humanos nas Américas há 71 mil anos). A África seria o paraíso do qual foi expulsa a humanidade. Daí vem o nome pelo qual a teoria é conhecida, Jardim do Éden.
Desse grupo escolhido -pelo acaso geológico-climático, não pelo Criador-, saíram os 90% de genes que todos partilham hoje. As diferenças mais aparentes, porém pouco numerosas, como cor da pele, seriam produto da curta evolução em diferentes ambientes. Isso acontece mais rápido quando o grupo inicial é muito reduzido (o chamado "efeito fundador").
Ambrose diz que juntou as peças genéticas e geológicas do quebra-cabeças por acidente: "Um amigo, Paul Handler, despertou meu interesse por vulcões e pelo El Niño. E aconteceu de ter um artigo em minha mesa sobre inverno vulcânico quando fui a uma conferência sobre gargalos, com Henry Harpending. Juntei as duas coisas e virou essa bola de neve", diz. "Nunca pensei que poderia fazer uma contribuição dessas para o debate da evolução humana."




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