São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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CIÊNCIA
Estudo sobre criança autista contesta origem de pinturas pré-históricas
Olhar inocente

Associated Press - 19.ago.1995
Desenhos pré-históricos encontrados em caverna em Combe D'Arc, na França, com cerca de 20 mil anos


DAVID CONCAR
da "New Scientist"

O talento artístico de uma menina autista inspirou uma nova e herética teoria sobre os artistas que pintaram as obras-primas da Idade da Pedra européia. Em vez de representar o florescimento inicial da mente criativa moderna, a arte das cavernas teria sido produzida por pessoas com problemas no desenvolvimento mental, diz um psicólogo.
Os arqueólogos presumem há décadas que os artistas das cavernas eram comunicativos e inteligentes. Essa opinião tornou-se ainda mais sólida quando da descoberta, há quatro anos, de exemplares espetaculares de arte da Idade da Pedra com 31 mil anos de idade, nas cavernas de Chauvet, sudeste da França.
A fluência e o realismo das figuras de animais encontradas pareciam provar que os seres humanos haviam desenvolvido a linguagem e as outras habilidades mentais necessárias ao emprego de uma sofisticada técnica de pintura.
Mas Nicholas Humphrey, da Nova Escola de Pesquisa Social de Nova York, nos EUA, não acredita nisso. Depois de um estudo da capacidade artística de uma criança autista, ele concluiu que os pintores das cavernas "não foram os primeiros artistas da era do simbolismo, mas os últimos dos inocentes" ("Cambridge Archaeological Journal", vol. 8, pág. 165).
Humphrey descobriu semelhanças perturbadoras entre as pinturas das cavernas em dois locais da França -Chauvet e Lascaux- e os desenhos de uma menina autista chamada Nadia, nascida em Nottingham, em 1967. A despeito de ter sérias dificuldades de aprendizado, Nadia desenhava com impressionante realismo desde os 3 anos de idade.
Nos anos 70, a psicóloga britânica Lorna Selfe escreveu um livro sobre Nadia. Os desenhos de cavalos, vacas e elefantes reproduzidos no livro lembram a Humphrey os cavalos, bisões e mamutes pintados pelos artistas das cavernas. Ambos os conjuntos de imagens são impressionantes em seu realismo e perspectiva, alega. E ambos capturam animais em movimento usando linhas para dar contorno às formas corpóreas.
Como Nadia, os artistas das cavernas frequentemente desenhavam animais de forma desordenada, uns sobre os outros, hábito que, no caso de Nadia, pode refletir seu autismo, diz Humphrey. Diferentemente das crianças normais, os autistas muitas vezes acham mais fácil se concentrar nos detalhes de cenas confusas e encontrar objetos camuflados.
Humphrey acredita que o talento artístico floresceu no caso de Nadia e dos pintores das cavernas não a despeito de suas deficiências mentais, mas por causa delas. A capacidade de desenho de Nadia parece ter atingido o apogeu entre seus 3 e 6 anos de idade, quando ela não conhecia praticamente nada da linguagem e parecia cega a ligações conceituais entre objetos.
Para ela, uma cadeira de braços e uma de mesa eram dois tipos de objeto diferentes. Selfe acredita que, em vez de nomear e conceituar objetos, ela os via e arquivava como "cavalo" ou "cadeira" em sua memória. Nadia era consciente apenas da impressão visual crua que um objeto criava, e isso alimentava sua arte.
Quando Nadia finalmente adquiriu um vocabulário funcional, por volta dos 12 anos, suas capacidades de pintura desapareceram. Humphrey acredita que algo semelhante possa ter acontecido aos artistas das cavernas. Ele sugere que 20 mil anos atrás as pessoas já se haviam tornado capazes de nomear e falar sobre outras pessoas, mas não ainda a respeito de animais, plantas e ferramentas. Quando a linguagem enfim evoluiu a ponto de incluir esse tipo de coisa, a arte teria sido prejudicada -como demonstram as imagens inflexíveis e repetitivas que começaram a aparecer depois do final da última Era Glacial, há 11 mil anos. Humphrey diz: "A perda da pintura naturalista foi o preço que teve de ser pago pela criação da poesia".
A teoria é tão controvertida que o jornal a publicou acompanhada de uma barragem de críticas dos especialistas. Steven Mithen, arqueólogo da Universidade de Reading, no Reino Unido, diz que o principal problema é que capacidades mentais como a linguagem parecem ter se desenvolvido há não menos de 100 mil anos. E ele questiona se um cérebro que não dispusesse das modernas capacidades conceituais, tais como a linguagem, seria capaz de produzir as complexas formas geométricas e outras imagens abstratas freqüentemente vistas na arte da Idade da Pedra.
Uta Frith, psicóloga do University College de Londres, concorda com Humphrey em que é um erro tomar a arte das cavernas como prova de que os artistas tinham cérebros como os nossos. Mas ela duvida que nossos ancestrais tenham passado centenas de milhares de anos incapazes de falar sobre onde encontrar comida e como fazer uma ferramenta, dado o alto valor adaptativo desse tipo de comunicação. Ela acrescenta que muitas crianças não dominam a linguagem, mas muito poucas dentre elas desenham como Nadia. Falta de linguagem não implica automaticamente a produção de arte de grande qualidade, diz.


Tradução de Paulo Migliacci



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