São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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PERISCÓPIO

Novas questões levantadas sobre a fisiologia do olfato

JOSÉ REIS
especial para a Folha

Dos sentidos humanos, o olfato parece o mais primitivo e também tem sido o menos estudado. Recentemente, a idéia que em geral fazemos de seu funcionamento foi desafiada por pesquisas que colocam principalmente na mucosa nasal, e não no cérebro, a faculdade de discriminar os cerca de 10 mil odores que reconhecemos.
O órgão olfativo consiste em uma pequena mancha amarelada, de alguns centímetros quadrados, situada na parte superior e interna da mucosa de cada uma das fossas nasais. Na mancha existem milhares de cílios microscópicos, que são as ramificações terminais de neurônios (células nervosas) bipolares, que, pela outra extremidade, se prolongam em filamentos (axônios) que, juntos, formam o nervo olfativo (um de cada lado). O nervo dirige-se a uma dobra do córtex da parte anterior e inferior do cérebro, o bulbo olfativo, um para cada hemisfério cerebral.
Bem pouco sabíamos há 40 anos da fisiologia do olfato, talvez pela dificuldade de realizar experimentos em animais, limitando-se os fisiologistas a acompanhar os fenômenos que ocorriam quando da recuperação do sentido temporariamente lesado ou suprimido por qualquer causa. Os fatos até então observados permitiram a A.W. Ham sugerir a hipótese seguinte: as células olfativas são de tipos diferentes, especializadas para serem estimuladas por certos odores básicos. Os receptores para esses tipos básicos de odores não se acham distribuídos igualmente por toda a mancha, mas são até certo ponto segregados. A capacidade de apreciar grande número de cheiros se deve ao estímulo desses sobre combinações diferentes de receptores dos odores básicos. A intensidade do cheiro depende do número de receptores por ele estimulados.
Com o passar do tempo, chegou-se a uma concepção diferente. Quando cheiramos alguma coisa, as moléculas odoríferas são captadas por alguns dos neurônios receptores, que são até certo ponto especializados nos tipos de odores a que respondem.
As células excitadas emitem impulsos que se propagam até o bulbo olfativo, sendo a intensidade da sensação proporcional ao número de receptores ativados, enquanto sua localização no nariz reflete a natureza do cheiro. Isso significa que cada cheiro é expresso por um padrão especial de atividade receptora, que é afinal transmitido ao bulbo.
Esse analisa cada padrão de sinais e sintetiza sua própria mensagem, transmitida a outra parte do sistema, o córtex olfativo, que envia novos sinais a muitos locais do cérebro, especialmente ao córtex entorrínico, em que os sinais são combinados com os de outros sistemas sensoriais. Daí resulta uma percepção carregada de sentido, peculiar a cada indivíduo.
Walter J. Freeman ("Scientific American", 264, 34) pesquisou a fundo a eletrofisiologia do que ocorre no bulbo e em outras áreas do cérebro, revelando que o processo olfativo realmente se faz com a participação de numerosos neurônios cerebrais a partir da síntese bulbar. E acredita haver descoberto mais, isto é, a existência de um estado de caos (comportamento complexo que parece ocorrer a esmo, porém na realidade possui uma certa ordem oculta) no funcionamento do cérebro. As percepções nasceriam da atividade caótica autocontrolada do córtex. A interação do córtex olfativo, do bulbo e da retroalimentação ("feedback") de outras partes do cérebro seriam essenciais para a manutenção e o controle do caos no sistema olfativo.
Não menos interessantes são os resultados das pesquisas de Richard Axel e Linda Duck publicados na revista "Cell". Eles dizem haver isolado o que acreditam ser os primeiros receptores odoríferos, genes individuais que são ativos apenas no nariz. Isolaram mais de algumas centenas desses genes, crendo porém na existência de mais de mil. Ao contrário, pois, do que se passa em outros sentidos, em que alguns poucos genes explicam os fenômenos, a maior parte da discriminação das moléculas olfativas seria feita em nível químico no próprio nariz. Os odores atingiriam receptores específicos nos cílios e a eles se ajustariam como chave à fechadura. Isso não excluiria, mas aliviaria de muito, a participação do cérebro no processo olfativo. E poderia ter uma razão de ser evolucionária, a partir de tempos primitivos em que o cheiro era talvez o sentido mais apurado e o cérebro, ainda muito pequeno para processar toda a carga de informação recebida.



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