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Micro/Macro
A misteriosa (e trágica) ilha de Páscoa
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Poucos lugares despertam tanto fascínio quanto a ilha de Páscoa, com
suas gigantescas e sombrias estátuas. Localizada a 3.500 quilômetros da costa do
Chile, a ilha é local da mais completa desolação. Nenhuma árvore com mais de
três metros pode ser vista em toda a sua
superfície. Não existem animais nativos
ou pássaros. Somente as enormes cabeças esculpidas em rocha vulcânica, centenas delas, a maioria com ao menos cinco metros de altura, algumas chegando a
20, todas pesando dezenas de toneladas.
O mistério da Ilha da Páscoa já existia
quando o primeiro explorador europeu,
o holandês Jacob Roggeveen, desembarcou lá em 5 de abril de 1722, durante a
Páscoa. Como, perguntou-se Roggeveen
após encontrar a pedreira de onde saíram as estátuas, elas foram transportadas e erigidas, se não existe material na
ilha para fazê-lo?
Durante quase três séculos, centenas
de livros e artigos foram escritos tecendo
teorias fantásticas sobre a origem e a função das misteriosas estátuas. Teriam elas
sido produzidas por seres extraterrestres
usando ferramentas ultramodernas antes de voltarem ao seu planeta, como sugeriu o escritor suíço Erich von Däniken?
Ou talvez elas tenham sido feitas por incas ou egípcios que, de algum modo,
chegaram até lá no passado, sugeriu o
explorador norueguês Thor Heyerdahl,
que atravessou oceanos em embarcações
primitivas para ilustrar a sua hipótese.
Décadas de investigações por antropólogos e arqueólogos essencialmente resolveram o mistério das gigantescas estátuas. Dois livros publicados recentemente nos EUA, "Os Enigmas da Ilha da Páscoa", de John Flenley e Paul Bahn, e "Entre os Gigantes de Pedra", de Jo Anne
Van Tilburg, contam uma história talvez
não tão fascinante como a dos incas ou
alienígenas, mas muito mais importante
para a nossa sobrevivência.
Entre 1914 e 1915, a arqueóloga Katherine Routledge visitou a ilha, obtendo relatos dos descendentes das tribos polinésias que chegaram lá em torno do ano
900 d.C. Várias ferramentas usadas para
esculpir as estátuas foram encontradas
na região de Rano Raraku, uma cratera.
A ilha chegou a ter uma população de 15
mil pessoas, em 11 tribos. Os chefes competiam entre si, erigindo as estátuas como símbolo de seu poder. Quanto
maior, melhor. Na Idade Média, cidades
faziam o mesmo com suas catedrais.
E como as estátuas foram transportadas e erigidas? Como nenhum europeu
viu isso acontecer, o que se pode fazer é
construir uma explicação consistente
com os achados científicos. Pedras gigantescas foram transportadas por várias outras civilizações, em geral apoiadas sobre grades feitas de madeira e puxadas por cordas, como um trenó. Mas
como, se não existem árvores na ilha?
Não existem agora, mas certamente
existiram no passado. Flenley, usando
técnicas que permitem identificar o pólen e restos carbonizados de plantas extintas, provou que, antes da chegada dos
humanos, a ilha continha uma floresta
subtropical rica em árvores enormes, incluindo uma palmeira gigante encontrada no Chile, que chega a ter 30 metros de
altura. Todas elas foram sistematicamente derrubadas para serem usadas
nas grades de transporte e em grandes
canoas para a pesca de atum, golfinho e
outros animais transoceânicos.
Estudos de ossos encontrados pela ilha
mostram que, no passado, existiam 6 espécies de aves nativas e 25 de aves marinhas. Todos essas aves desapareceram.
Foi possível também reconstruir como a
alimentação dos nativos variou durante
os séculos. Ossos de atum e golfinho,
abundantes durante os primeiros séculos, desapareceram em torno de 1600:
com todas as árvores derrubadas, não
era mais possível construir canoas transoceânicas. Os nativos passaram a devorar sistematicamente os animais da ilha.
Quando acabaram, ou quase (sobraram
principalmente ratos), eles passaram a
devorar a si próprios: em torno de 1700, a
ilha entrou em uma era de canibalismo.
O homem é um predador ineficiente,
imediatista, que tende a não calcular o
quanto pode consumir antes de se autodestruir. O atum, o salmão e o bacalhau
estão ameaçados. Florestas inteiras são
derrubadas diariamente. A poluição
continua crescendo. Talvez todos devêssemos fazer uma visita, real ou imaginária, à ilha da Páscoa, e aprender com sua
trágica história, antes que só restem nossas estátuas e monumentos.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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