São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2004

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ANTROPOLOGIA

Fóssil estudado por cientistas brasileiros sugere que esses felinos ainda existiam na América há 9.100 anos

Tigre-de-dente-de-sabre viveu com humano

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Agora não resta mais dúvida: os primeiros brasileiros, além de terem de enfrentar o ambiente hostil e em rápida modificação do fim da Era do Gelo, ainda precisaram escapar do temível Smilodon populator, o maior tigre-de-dente-de-sabre que já existiu na Terra.
A espantosa resistência do bicho, aliás, parece confirmar o velho ditado de que vaso ruim não quebra. Ou melhor, demora um bocado para quebrar: pesquisadores da USP acabam de provar que a criatura ainda estava viva há 9.100 anos, quando boa parte da megafauna (os mamíferos gigantes que então habitavam as Américas) já tinha ido para a cova havia um bom tempo.
A nova data, que estabelece de vez a convivência entre o felino e os primeiros homens do Brasil, foi obtida por Walter Neves e Luís Beethoven Piló, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP. O tigre-de-dente-de-sabre foi escavado na região mineira de Lagoa Santa, a cerca de 50 km de Belo Horizonte -provavelmente o complexo arqueológico mais importante das Américas. Foi dali que veio o esqueleto de "Luzia", o mais antigo ser humano do continente, com idade estimada em 11,5 mil anos.
"Embora não tenhamos uma idade exata da Luzia [porque não foi possível datar os restos por meio de técnicas precisas, como a do carbono-14], sabemos que seres humanos provavelmente estavam em Lagoa Santa há mais de 11 mil anos, e com certeza absoluta a partir de 10,2 mil anos, quando temos uma data com carvão de fogueiras", disse Neves à Folha. "Isso significa uma convivência de milhares de anos."
Os novos dados sobre a convivência entre o povo de Luzia e os supermamíferos do Pleistoceno, como os cientistas chamam a Era do Gelo, vêm de fósseis que já estão por aí há mais de cem anos. Trata-se da coleção montada pelo naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), o pesquisador que descobriu o imenso potencial de Lagoa Santa e remeteu fósseis humanos e de megafauna para Copenhague.
Em agosto de 2002, Neves e Piló conseguiram ir à capital dinamarquesa para estudar o espólio lundiano. Dos fósseis, no entanto, só sete puderam ser datados: "É a maldita falta de colágeno de Lagoa Santa", reclama Neves. Sem essa molécula, que às vezes fica preservada nos ossos, é impossível datar diretamente os fósseis.
De todas as datas obtidas pelos pesquisadores em membros da megafauna (que incluía também preguiças gigantes e o extinto cavalo sul-americano), o felino é o mais recente, com uma diferença de milhares ou centenas de anos.
A criatura, com 1,2 m de altura nos ombros e cerca de 400 kg, era a maior do seu grupo, deixando no chinelo os seus primos americanos da Califórnia. "Na região havia um mosaico de cerrado e floresta, além de manchas de campo, já que havia cavalos ali", diz Piló. Supõe-se que o S. populator caçasse em bandos, usando os enormes caninos que lhe dão o nome para estraçalhar as veias do pescoço de suas vítimas.
A sobrevivência do bicho até uma época tão tardia sugere, para os pesquisadores, que ele não era assim tão dependente das preguiças gigantes e outros mamíferos de grande porte para sobreviver. Além disso, as datações dos animais começam a traçar um quadro no qual aquela multidão de gigantes não desapareceu toda de uma vez (visão que Piló chama de "catastrofista"), mas aos poucos, por razões particulares.


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