São Paulo, domingo, 23 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Próximo Texto | Índice

O biólogo norte-americano Richard Lewontin defende, em livro lançado nos EUA, que é preciso considerar o efeito do ambiente como um fator essencial para o funcionamento dos genes
A terceira hélice

Divulgação
Modelo de estrutura de dupla hélice do DNA, molécula que compõe o material genético dos seres vivos


JOHN R. G. TURNER
especial para o "The New York Times"

O biólogo molecular Walter Gilbert, de acordo com Richard Lewontin, uma vez declarou que, quando a sequência do genoma humano estivesse completa, "(o homem) iria saber o que é ser humano". Essa afirmação seria: (a) uma forma elegante de descrever o que é ciência; (b) risível, pois só por meio de Deus seria possível entender o que é ser humano; (c) a tentativa de um cientista em chamar atenção para conseguir recursos para pesquisa; (d) lixo total? Segundo o livro "The Triple Helix" (A tripla hélice), a resposta certa é a última. Subjazem aqui grandes afirmações filosóficas, não-explicitadas, como o que significa "explicar" algo e se o futuro, especialmente o nosso próprio futuro, é predestinado ou incerto. A ciência não responde a essas perguntas: como cabe a um cientista, a opinião de Lewontin é mais pragmática e tende a perceber que a ciência apenas prevê as coisas. Pessoalmente, eu gosto de pensar no Universo não como uma máquina (o que Lewontin aponta ser inválido), mas como uma rede de ônibus na qual a identificação dos ônibus e a razão pela qual eles continuam rodando não são conhecidas. A ciência é como uma tabela de horários de um ônibus. Esqueça a "verdade": se for possível conciliar os horários, haverá uma chance muito melhor de conseguir pegar o ônibus.

DNA não é tudo
Não poderemos prever totalmente o funcionamento do Universo ao entender tudo sobre física de partículas. Da mesma forma, não será possível prever um ser humano, ou um organismo, com base na sequência de DNA. Lewontin, um famoso biólogo e professor da Universidade Harvard, nos EUA, mostra nesse livro que a sequência completa do genoma não informa, sem uma compreensão maior de bioquímica, quais moléculas serão produzidas quando uma célula "lê" o genoma, porque não temos certeza sobre a forma com que a leitura é suspensa e retomada enquanto ocorre. Quando soubermos que partes foram de fato lidas, não poderemos descrever o organismo resultante, porque ninguém é capaz de prever o "folding" (estrutura tridimensional) da proteína baseando-se exclusivamente na sua sequência de aminoácidos. É a estrutura que determina o que a proteína fará na célula. Além disso, tudo é provocado por tudo o mais de forma que não é possível separar uma coisa da outra. Como diz um velho ditado, "assassina-se para dissecar", e qualquer investigador destrói o próprio fenômeno que está investigando. Isso leva a um parodoxo holístico, que "prova" que a ciência é impossível. A tese de Lewontin é que a ciência funciona somente porque há áreas circunscritas em que é possível fazer simplificações proveitosas. Embora na física seja impossível resolver um problema que envolva inúmeros corpos e prever os movimentos de vários planetas com base na força gravitacional que exercem entre si, ocorre que o Sistema Solar foi construído de forma tal que se pode ignorar essa dificuldade na maior parte das vezes e prever eclipses com apenas imprecisões triviais, realizando cálculos mais simples, com dois corpos. Na biologia, Lewontin acredita que há menos oportunidades para simplificações criativas do que os biólogos gostam de imaginar, e as simplificações estão aptas a nos colocar no ônibus errado. Considere, por exemplo, os genes, o meio ambiente e a habilidade: é fácil supor que, se no mesmo ambiente medíocre Tom desenvolve sua educação e sua carreira melhor que Harry, então a diferença está nos genes. Pode-se então supor que, colocado em um ambiente rico em educação, Tom, com seus genes superiores, poderá ter uma carreira espetacular, quando comparado a Harry. Mas pode-se imaginar uma situação diferente, em que o ambiente mais rico evite que Tom tenha desafios, e ele se torna acomodado, deixando Harry, que não está mais exposto à pobreza de oportunidades, em posição de superá-lo. Como Lewontin mostra em seus experimentos com plantas e moscas, a forma com que indivíduos geneticamente diferentes respondem a vários ambientes é imprevisível. Da mesma forma, não podemos prever a ecologia e a evolução simplesmente com base no conhecimento sobre os organismos. Na teoria da evolução, há o costume de pensar em um organismo separado do ambiente: a sobrevivência do organismo, quando desafiado pelo ambiente, é um processo de seleção natural. Mas, como Lewontin mostra, isso é uma simplificação grosseira. Organismos mudam e até certo ponto criam os seus ambientes da forma mais óbvia, mas de maneira alguma exclusiva, poluindo-os. A vida evoluiu não apenas em resposta a mudanças dos aspectos físicos da Terra e da radiação solar, mas como resposta a mudanças que a vida fez em relação à química do planeta. Na psicologia do desenvolvimento humano, sabe-se que crianças de diferentes temperamentos provocam comportamentos diversos em seus pais. O que à primeira vista parece efeito da psicologia da educação às vezes é algo mais complicado: quaisquer genes que influenciem o temperamento criam também o próprio ambiente, que, inversamente, influencia a personalidade.

Alfinetadas
Ao contrário da física, sugere Lewontin, a biologia é afetada pelo fato de que, em organismos, muitas causas mais fracas podem interagir, e o resultado é crucialmente dependente de acidentes da história e do estado inicial do sistema. Ele é vago na indeterminação e cauteloso sobre a teoria do caos, e nunca menciona a indeterminação quântica. Lewontin subestima consideravelmente o poder que a ciência tem de fazer previsões estatísticas entre múltiplas causas fracas (câncer pode não "causar" a morte, que é inevitável, mas fumar vai diminuir as chances estatísticas de longevidade). Ele também dá algumas deliciosas alfinetadas em seus inimigos: capitalismo, psicólogos que preferem a hereditariedade ("nature") ao ambiente ("nurture") e conservacionistas que querem preservar o "ambiente". Segundo ele, isso não existe: o ambiente só pode ser definido em relação a organismos que o habitam e não pode ser mantido de uma forma imutável.
O próximo estágio requer que os biólogos se concentrem menos nas sequências moleculares (que parecem ser a resposta, mas não são) e voltem às disciplinas mais tradicionais, como o estudo da forma tridimensional aplicada a moléculas, embriões e organismos. Esse livro é difícil, mas é um desafio muito gratificante, direcionado a persuadir biólogos profissionais a levar em consideração o que eles já sabem em algum grau de suas consciências. O leitor não-especializado vai encontrar na obra uma crítica construtiva das limitações da ciência feita por um cientista bem-sucedido e talentoso.



The Triple Helix
de Richard Lewontin
192 págs. US$ 22,95
Onde encomendar: Em SP, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 0/xx/11/285-4033).



John R. G. Turner é professor de genética evolutiva na Universidade de Leeds, no Reino Unido Tradução de Gabriela Scheinberg

Próximo Texto: +Ciência Paleontologia: Caçadores de fósseis
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.