São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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CIÊNCIA
Terapeutas podem induzir pessoas a "lembrar" fatos que nunca aconteceram
Memória forjada

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

Que a memória humana é um instrumento falho todos sabem. Mas que é possível, de modo relativamente fácil, fazer alguém se lembrar de algo que não aconteceu é uma nova e preocupante descoberta da psicologia.
Mais ainda: a própria pessoa passa a inventar detalhes daquilo que se "passou" com ela, solidificando ainda mais a falsa memória.
É o fenômeno chamado "inflação da imaginação", descrito pela psicóloga norte-americana Elizabeth Loftus: depois de fazer a mente imaginar os detalhes do "evento", a certeza de que ele de fato ocorreu tende a aumentar.
Esses fenômenos seriam uma mera curiosidade científica se não estivessem disseminados no dia-a-dia das pessoas. Estudos têm mostrado que a sugestão -por um policial em interrogatório, por um psicanalista ou pelos meios de comunicação- tem o poder de alterar a memória de fatos vividos.
Pior ainda: criou-se nos EUA uma "indústria", diz Loftus, da "memória reprimida" de eventos traumatizantes, que fez muitas mulheres imaginarem que foram repetidamente abusadas sexualmente quando crianças.
Em pelo menos um caso, um sujeito inocente foi para a cadeia baseado apenas nessa "prova" testemunhal, arrancada pelo terapeuta, da memória de sua filha. Ele foi solto após a filha ter inventado crimes que ele não poderia ter de modo algum cometido, por estar viajando, e quando se notou a semelhança de uma descrição com um caso real, bem divulgado pelos meios de comunicação na época do suposto "crime", em 1969.
Em um caso, a prova de que a "memória" tinha sido implantada pelo terapeuta foi mais fácil.
A norte-americana Beth Rutherford foi levada a crer pelo seu terapeuta que seu pai, um ministro religioso -que teve de abandonar o sacerdócio-, a tinha estuprado repetidas vezes dos 7 anos aos 14 anos e, em pelo menos um dos casos, com ajuda da própria mãe.
Beth também se "lembrou" que teria abortado duas vezes com ajuda de cabides. O caso terminou após um exame médico comprovar que ela nunca engravidara e era virgem aos 22 anos de idade. Ela processou o terapeuta e recebeu indenização de US$ 1 milhão.
As memórias "resgatadas" com ajuda do analista podem parecer pura loucura: a norte-americana Nadean Cool, por exemplo, "lembrou" ter participado de um culto satânico no qual se comiam bebês, de ter feito sexo com animais e de ser forçada a presenciar o assassinato de sua amiguinha de oito anos. Ela também foi à justiça contra seu terapeuta, e recebeu US$ 2,4 milhões de indenização.
Loftus, professora da Universidade de Washington, em Seattle (EUA), e presidente da Sociedade Psicológica Americana, diz que esse "mito da memória reprimida" está prejudicando a imagem dos terapeutas e das vítimas de abusos sexuais reais na infância, que passaram a ser desacreditadas.
"O paciente não deve sair com um problema a mais além daquele com que chegou", disse Loftus, em uma palestra em Heidelberg (Alemanha), em julho passado, no 2º Congresso Mundial dos Céticos.
Ela lembra uma pesquisa sobre as técnicas utilizadas por profissionais da área de saúde mental que indicou que cerca de um terço deles rotineiramente usa hipnose, interpretação de sonhos e a mostra de algum tipo de material para ajudar no resgate memórias.
Loftus e colaboradores fizeram vários experimentos de "implante" de memória, usando "lembranças" que não seriam traumáticas após ser revelado que se tratavam de invenções.
Eram memórias como "você se perdeu em um shopping center quando tinha cinco anos", ou então "você derramou a tigela de ponche em cima dos pais da noiva durante uma festa de casamento".
Para determinar se de fato algo assim havia ocorrido ou não, era pedida a ajuda dos pais do entrevistado. Após três entrevistas, nas quais descreviam suas memórias, falsas e verdadeiras, 25% dos participantes insistiam que tinham derrubado o ponche -e entravam em detalhes, como "era um casamento ao ar livre, eu estava correndo e derrubei a vasilha".
Loftus também estudou o papel do terapeuta na formação da "memória". Em um estudo feito com ajuda de um terapeuta italiano, ela notou que 89% dos pacientes aumentavam a confiança na memória após uma sessão de meia hora com o analista, na qual seus sonhos eram interpretados.
A ensaísta americana Susan Sontag escreveu que "pelo menos o passado é seguro", referindo-se às suas memórias. Não é mais o caso. O artista espanhol Salvador Dali (1904-1989) foi mais presciente quando disse que "a diferença entre as falsas memórias e as verdadeiras é a mesma entre as jóias: são sempre as falsas que parecem mais reais, mais brilhantes".



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