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CIÊNCIA
Terapeutas podem induzir pessoas a "lembrar" fatos que nunca aconteceram
Memória forjada
RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha
Que a memória humana é um
instrumento falho todos sabem.
Mas que é possível, de modo relativamente fácil, fazer alguém se
lembrar de algo que não aconteceu é uma nova e preocupante
descoberta da psicologia.
Mais ainda: a própria pessoa
passa a inventar detalhes daquilo
que se "passou" com ela, solidificando ainda mais a falsa memória.
É o fenômeno chamado "inflação da imaginação", descrito pela
psicóloga norte-americana Elizabeth Loftus: depois de fazer a mente imaginar os detalhes do "evento", a certeza de que ele de fato
ocorreu tende a aumentar.
Esses fenômenos seriam uma
mera curiosidade científica se não
estivessem disseminados no
dia-a-dia das pessoas. Estudos têm
mostrado que a sugestão -por
um policial em interrogatório, por
um psicanalista ou pelos meios de
comunicação- tem o poder de alterar a memória de fatos vividos.
Pior ainda: criou-se nos EUA
uma "indústria", diz Loftus, da
"memória reprimida" de eventos
traumatizantes, que fez muitas
mulheres imaginarem que foram
repetidamente abusadas sexualmente quando crianças.
Em pelo menos um caso, um sujeito inocente foi para a cadeia baseado apenas nessa "prova" testemunhal, arrancada pelo terapeuta, da memória de sua filha. Ele
foi solto após a filha ter inventado
crimes que ele não poderia ter de
modo algum cometido, por estar
viajando, e quando se notou a semelhança de uma descrição com
um caso real, bem divulgado pelos
meios de comunicação na época
do suposto "crime", em 1969.
Em um caso, a prova de que a
"memória" tinha sido implantada pelo terapeuta foi mais fácil.
A norte-americana Beth Rutherford foi levada a crer pelo seu terapeuta que seu pai, um ministro religioso -que teve de abandonar o
sacerdócio-, a tinha estuprado
repetidas vezes dos 7 anos aos 14
anos e, em pelo menos um dos casos, com ajuda da própria mãe.
Beth também se "lembrou" que
teria abortado duas vezes com ajuda de cabides. O caso terminou
após um exame médico comprovar que ela nunca engravidara e
era virgem aos 22 anos de idade.
Ela processou o terapeuta e recebeu indenização de US$ 1 milhão.
As memórias "resgatadas" com
ajuda do analista podem parecer
pura loucura: a norte-americana
Nadean Cool, por exemplo, "lembrou" ter participado de um culto
satânico no qual se comiam bebês,
de ter feito sexo com animais e de
ser forçada a presenciar o assassinato de sua amiguinha de oito
anos. Ela também foi à justiça contra seu terapeuta, e recebeu US$
2,4 milhões de indenização.
Loftus, professora da Universidade de Washington, em Seattle
(EUA), e presidente da Sociedade
Psicológica Americana, diz que esse "mito da memória reprimida"
está prejudicando a imagem dos
terapeutas e das vítimas de abusos
sexuais reais na infância, que passaram a ser desacreditadas.
"O paciente não deve sair com
um problema a mais além daquele
com que chegou", disse Loftus,
em uma palestra em Heidelberg
(Alemanha), em julho passado, no
2º Congresso Mundial dos Céticos.
Ela lembra uma pesquisa sobre
as técnicas utilizadas por profissionais da área de saúde mental
que indicou que cerca de um terço
deles rotineiramente usa hipnose,
interpretação de sonhos e a mostra de algum tipo de material para
ajudar no resgate memórias.
Loftus e colaboradores fizeram
vários experimentos de "implante" de memória, usando "lembranças" que não seriam traumáticas após ser revelado que se tratavam de invenções.
Eram memórias como "você se
perdeu em um shopping center
quando tinha cinco anos", ou então "você derramou a tigela de
ponche em cima dos pais da noiva
durante uma festa de casamento".
Para determinar se de fato algo
assim havia ocorrido ou não, era
pedida a ajuda dos pais do entrevistado. Após três entrevistas, nas
quais descreviam suas memórias,
falsas e verdadeiras, 25% dos participantes insistiam que tinham
derrubado o ponche -e entravam
em detalhes, como "era um casamento ao ar livre, eu estava correndo e derrubei a vasilha".
Loftus também estudou o papel
do terapeuta na formação da
"memória". Em um estudo feito
com ajuda de um terapeuta italiano, ela notou que 89% dos pacientes aumentavam a confiança na
memória após uma sessão de meia
hora com o analista, na qual seus
sonhos eram interpretados.
A ensaísta americana Susan Sontag escreveu que "pelo menos o
passado é seguro", referindo-se às
suas memórias. Não é mais o caso.
O artista espanhol Salvador Dali
(1904-1989) foi mais presciente
quando disse que "a diferença entre as falsas memórias e as verdadeiras é a mesma entre as jóias: são
sempre as falsas que parecem mais
reais, mais brilhantes".
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