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MICRO-MACRO
Uma nova ciência para um novo milênio
MARCELO GLEISER
especial para a Folha
Se existe algo que nos impressiona ao refletirmos sobre o
mundo que nos cerca é sua diversidade: o vivo e o não-vivo,
animais e pedras, árvores e nuvens, se desdobram em incontáveis formas, expressões de uma
criatividade que nos emociona e
inspira.
Nós também somos produto
dessa criatividade. Ao que tudo
indica (pelo menos em nossa vizinhança solar), somos a única
espécie capaz refletir sobre si
própria e o ambiente que a cerca.
É por meio da ciência que procuramos organizar o que aprendemos sobre a natureza, buscando sempre explicações simples e
concretas dos fenômenos que
observamos.
De certa forma, podemos medir o sucesso de uma teoria científica pelo seu poder de explicação. Quanto mais completa ela
for, maior o número de fenômenos que ela poderá explicar,
usando o menor número possível de princípios ou leis.
Historicamente, é na física que
encontramos o modelo fundamental para a estruturação das
teorias científicas. Durante o século 17, Galileu Galilei e Isaac
Newton desenvolveram a mecânica, que estuda o movimento de
corpos materiais no espaço. Em
seu magnífico livro "Princípios
Matemáticos da Filosofia Natural", publicado em 1687, Newton estruturou toda a mecânica a
partir de apenas três leis básicas,
as famosas "leis do movimento".
Qualquer movimento que observamos na natureza, seja ele a
órbita de um cometa em torno
do Sol, a queda de uma gota de
chuva ou o movimento de um ciclista em sua bicicleta, pode ser
explicado aplicando-se uma ou
mais leis de movimento (a mecânica newtoniana falha na descrição de movimentos muito rápidos, com velocidade comparáveis à da luz, ou na descrição de
movimentos na escala atômica.
Mas nossa vida diária é certamente newtoniana).
Para atingir esse enorme poder
descritivo com apenas algumas
leis, Newton reduziu o mundo a
uma coleção de pontos materiais
(como bolas de sinuca) agindo
sob a ação de forças. Essa é uma
descrição reducionista, uma estratégia amplamente adotada em
todas as disciplinas científicas:
dividir e simplificar ao máximo
um sistema complicado, facilitando assim a descrição de seu
comportamento.
O sucesso da descrição newtoniana do mundo foi tão imenso
que o reducionismo tornou-se a
pedra filosofal da ciência. E, sem
dúvida, quando aplicado a outras disciplinas, o reducionismo
também foi muito bem-sucedido. Em química, falamos de átomos e moléculas; em biologia,
falamos de células e genes; e, em
certos ramos da psicologia, falamos de categorias de comportamento ou da quantificação das
várias formas de expressão, verbais e corporais.
Sem dúvida, nosso século será
lembrado como o século de glória do reducionismo. As nossas
vidas hoje são produto de inúmeros avanços em ciência e tecnologia, cujo sucesso é consequência direta da aplicação do
reducionismo. Mas nem tudo é
um mar de rosas, e esses avanços
trazem seríssimos efeitos colaterais, como o poder destrutivo de
nossas armas, a poluição desenfreada do meio ambiente, os perigos de manipulação da opinião
pública pela exploração dos
meios de comunicação. Como
dizia o Buda, "onde existe luz,
existe sombra".
Os tempos estão mudando;
novas direções surgem em ciência, apontando para o oposto do
reducionismo: o uso de técnicas
globais na descrição de sistemas.
Não dividir para entender, mas
tratar o comportamento do todo
como um todo; o todo é maior
do que a soma das partes.
O cérebro não é o produto da
soma de seus neurônios, a emergência da vida é um fenômeno
coletivo, nosso planeta e todos
os seus habitantes devem ser tratados como uma unidade, em
que ações locais podem ter efeitos globais. Uma nova ciência
para um novo milênio, onde o
reducionismo e o "holismo" se
complementarão em nossa descrição do mundo.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica
do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e
autor do livro "A Dança do Universo"
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