São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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A vingança do mamute

Derretimento dos solos da Sibéria expõe matéria orgânica depositada por animais há milhares de anos e pode agravar o efeito estufa

Dimitry Solovyov/Reuters
Especialista em ecossistemas árticos examina fósseis de mamutes e outros animais, expostos pelo degelo da Sibéria


DIMITRY SOLOVYOV
DA REUTERS, EM TCHERSKY (RÚSSIA)

S ergei Zimov se abaixa, apanha uma porção de lama viscosa e a aproxima do nariz. O cheiro é de esterco de vaca, mas ele sabe do que realmente se trata. "Tem cheiro de cocô de mamute", diz.
Este é mais do que apenas outro sintoma qualquer do aquecimento global.
Durante milênios, várias camadas de dejetos animais e outros tipos de matéria orgânica deixados pelas criaturas que habitavam a tundra do Ártico permaneceram seladas no permafrost, nome dado aos solos permanentemente congelados daquela região. Agora, a mudança climática está derretendo o permafrost e tirando essa meleca pré-histórica de seu estado de animação suspensa.
Mas Zimov, um cientista que estudou as mudanças climáticas no Ártico russo durante quase 30 anos, diz acreditar que, à medida que essa matéria orgânica seja exposta ao ar, ela acabará acelerando o aquecimento global mais do que o previsto até por alguns dos modelos mais pessimistas.
"Isso levará a um tipo de aquecimento que será impossível de frear", afirmou.
Quando a matéria orgânica deixada pelos mamutes e outros animais é exposta ao ar devido ao derretimento do permafrost, bactérias que estiveram dormentes por milhares de anos voltam à ação. Como subproduto dessa atividade, elas emitem dióxido de carbono (CO2), o principal gás responsável por "engrossar" o cobertor de gases que aprisiona o calor irradiado pelo planeta na atmosfera. Pior ainda, elas também emitem metano (CH4), que é ainda mais potente que o CO2 para reter calor.
Na Iakútia, região no nordeste da Sibéria, a faixa de permafrost que contém solo do tempo dos mamutes cobre uma área mais ou menos equivalente às da França e da Alemanha somadas. Há ainda mais permafrost em outras regiões siberianas.
"Os depósitos de matéria orgânica nesses solos são tão gigantescos que eles apequenam as reservas mundiais de petróleo", afirmou Zimov.
Estatísticas do IPCC, o painel do clima das Nações Unidas, dão conta de que a humanidade emite 7 bilhões de toneladas de carbono por ano. "As áreas de permafrost contêm 500 bilhões de toneladas de carbono, que podem rapidamente se converter em gases-estufa", disse Zimov.
"Se você não interromper as emissões de gases-estufa para a atmosfera... o Protocolo de Kyoto vai parecer brincadeira de criança", continuou.

Bomba de metano
Pode ser fácil ignorar o cientista de 52 anos e chamá-lo de maluco alarmista. Mas sua teoria tem ganho atenção da comunidade científica.
Um relatório das Nações Unidas publicado em junho afirmou que ainda não há sinais evidentes de derretimento disseminado do permafrost que possa fazer muita diferença no aquecimento global, mas apontou para a ameaça potencial que ele representa.
"A camada superior do permafrost contém mais carbono orgânico do que a atmosfera", afirma o documento.
Zimov é cientista-chefe da estação científica do nordeste da Academia Russa de Ciências, a três pernas de vôo e oito fusos horários de Moscou. Em Duvánni Iar,às margens do rio Kolima, o fenômeno que Zimov descreve em suas conferências pode ser apreciado em primeira mão.
A barranca do rio, até agora mantida pelo permafrost, está desmoronando à medida que o gelo derrete. De tempos em tempos, ouve-se o estrondo dos blocos de solo e permafrost rolando barranco abaixo.
Perto dali, Zimov aponta para uma área que até agora não foi afetada pelo derretimento -uma floresta coberta por um tapete macio de musgos e líquen. Mais para baixo, no entanto, a paisagem é coberta de árvores que tombaram devido à desintegração do solo.
Em outros lugares, áreas que cinco ou dez anos atrás eram pura tundra agora estão salpicadas de lagos -resultantes do derretimento do permafrost. Esses lagos de "termocarste", como são chamados pelos geólogos, borbulham com metano, um gás-estufa 21 vezes mais potente que o dióxido de carbono, embora ocorra na atmosfera em níveis muito mais baixos.
O derretimento do permafrost afeta os raros assentamentos humanos da Sibéria. Em Tchersky, uma cidade de 3.000 pessoas, prédios de apartamentos têm rachaduras nas paredes devido ao afundamento do terreno onde estão construídos. Muitos foram demolidos por falta de segurança.
O número de pessoas que vive nesta vastidão é tão pequeno que as mudanças na sua paisagem dificilmente preocupariam quem mora do outro lado do mundo. Mas Zimov avisa que as pessoas em toda parte deveriam se preocupar, porque, em alguns anos, o efeito-dominó do degelo do permafrost siberiano poderá ter um impacto direto sobre elas. "No fim, os problemas locais do norte serão os problemas do sul da Rússia, da Amazônia ou da Holanda", pontifica.


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