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+ Marcelo Leite
Irrespirável
A época é indefinida, assim como a catástrofe que os pôs em marcha
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Se você andava achando impossível respirar depois de quase dois
meses sem chuva em São Paulo,
ou coisa semelhante em Ribeirão Preto, ou em Cuiabá, ou se não agüenta
mais assistir a queimadas nos parques
nacionais e na beira das rodovias -você ainda não viu nada. Experimente
ler "A Estrada", de Cormac McCarthy
(Alfaguara, 240 págs., R$ 33,90), para
saber o que é bom para a tosse.
Cabe alertar que não se trata do melhor livro do grande McCarthy. Sua
trilogia da fronteira, aberta com "Todos os Belos Cavalos", ainda ganha
(embora um sábio garanta que "Blood
Meridian" -aparentemente sem edição nacional- ultrapassa a todos). De
qualquer modo, "A Estrada" ganhou o
Pulitzer de 2007 e, sendo um
McCarthy, por definição deve ser lido.
Prepare-se. É uma viagem ruim. "O
homem" e "o menino", seu filho, perambulam por um mundo pós-hecatombe, recolhendo as migalhas de um
tempo ido, sem volta, sem esperança,
sem horizontes. Só cinzas, fumaça,
névoa, fome e frio.
A época é indefinida, assim como a
catástrofe que os pôs em marcha.
Muita coisa na descrição sombria do
romance sugere um "inverno nuclear", pesadelo delineado nos anos
1980, entre outros, por Carl Sagan:
após um conflito atômico mundial, as
explosões lançariam tantos detritos e
poeira na atmosfera que boa parte da
radiação solar ficaria impedida de
chegar à superfície do planeta, enregelando a biosfera.
O homem e o menino cruzam vários
bosques e matas calcinadas, porém.
Não é de todo implausível que um
aquecimento global fora de controle
resulte em incêndios florestais de escala continental, tapando o céu com
fuligem. Basta ver o que poucas semanas sem chuva tem feito com a vegetação, por aqui, em matéria de inflamabilidade, neste ano de 2007 recordista
de queimadas.
Como se isso importasse alguma
coisa para o livro. De ficção científica
ele nada tem, ou tem muito pouco, e
cobrar-lhe coerência com modelos
climáticos seria uma alternativa, mas
não uma solução. Nem por isso o homem e o filho do homem passariam a
respirar aliviados.
A certa altura de sua jornada sem
meta, o leitor se percebe percorrendo
as páginas em agonia solidária, como
se também ele levasse apertada a máscara de trapos sobre boca e nariz, e o
corpo coberto de andrajos fedorentos.
Não tem saída a não ser seguir adiante, na certeza de que encontrará pela
frente, seguida e invariavelmente, só
canibais, cadáveres e moribundos. Cada vez mais gelada e apavorante, a
narrativa prossegue.
Assim como o homem e o menino
topam aqui e ali com despensas ainda
não saqueadas, o leitor também se depara ao longo do livro com vestígios
teimosos de humanidade nos dois. O
verdadeiro personagem do romance é
o vínculo entre eles, o apego tenaz a
uma busca conjunta de felicidade
-àquela altura possível só na imaginação, num futuro de puro desejo-
que segrega os derradeiros fios de reciprocidade e altruísmo.
O elo mais sólido, na cadeia que, todos sabem, terminará mal, é o menino. A fortaleza, a resolução e a coragem do pai de nada valeriam, para sua
sobrevivência como pessoas, sem as
lágrimas piedosas do filho, de seus silêncios enojados, do risco permanente de o sofrimento alheio lhe retirar as forças para continuar vivendo.
O pai, nesse mundo sem luz ou calor, é filho do menino, e só se liberta
em seus braços, mais na esperança do
que na certeza de que ele prosseguirá.
E vamos todos respirando, sufocados
-pior que nunca.
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em
Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net ). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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