São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000

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Projeto alemão e brasileiro vai financiar a documentação de três línguas do Xingu
À beira da extinção

Claudio Angelo
da Reportagem Local

0 Misux apudan ka-in pila ke kut chï. Não, você não entendeu nada. Essa frase faz sentido para menos de 60 pessoas no planeta hoje. Ela está escrita em trumai, uma das línguas brasileiras mais ameaçadas de extinção. Dos 120 trumais que habitam hoje o Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, apenas 51 dominam o idioma, nenhum deles menor de 25 anos. "Para as crianças, o português já é a língua materna", diz a linguista Raquel Guirardello, do Instituto Max Planck de Psicolinguística em Nijmmegen, Holanda. Sem novos falantes, o trumai está condenado à morte. No que depender de um grupo de pesquisadores do Brasil e da Alemanha, no entanto, a extinção pode ser evitada. O trumai é um dos três idiomas indígenas que serão documentados num projeto-piloto financiado pela Fundação Volkswagen, com sede em Hannover. O projeto prevê a construção, em cinco anos, de um banco de dados digital com textos e sons nas línguas trumai, aweti e cuicuro, todas elas do Xingu. Para isso, Guirardello e os linguistas Bruna Franchetto, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, e Sebastian Drude, da Universidade Livre de Berlim, começam a ir a campo em março do ano que vem para coletar dados. O projeto da Volks vai destinar um total de US$ 1,6 milhão ao registro de oito línguas em risco de extinção no mundo todo (as outras cinco são o wichita, dos EUA, o tofa, da Sibéria, o teop, da Papua Nova Guiné, o ega, da Costa do Marfim, e o salar, da China). Diversidade "O objetivo, agora, é desenvolver uma metodologia padronizada para a documentação, que ainda não existe. Depois outras línguas poderão concorrer ao financiamento", afirma Drude, um alemão de 32 anos que fala português quase sem sotaque e que tem no currículo, entre outras coisas, a concepção de um dicionário guarani-alemão, "para ajudar os alemães que queiram aprender a língua". E são muitos? "Ah, em Berlim, uns 12 por ano", ri. Apaixonado pelo Brasil desde os 20 anos, quando deixou Hannover para fazer um trabalho voluntário em Teófilo Otoni (Minas Gerais), Drude começou a estudar o aweti em 1998. Suas colegas têm ainda mais tempo de pesquisa: Guirardello trabalha com os trumais desde 1989 e Bruna Franchetto convive com os cuicuros há 24 anos. "Acumulei nesse período uma quantidade imensa de dados sobre a estrutura e o léxico da língua, mas nunca tive tempo de organizá-los", afirma Franchetto. "Esse projeto é a oportunidade de finalmente sistematizar o cuicuro", conta a linguista do Museu Nacional. O investimento da fundação alemã pode ser o começo de um novo esforço para deter o ritmo acelerado da extinção das línguas indígenas no país. "Fala-se em preservar a biodiversidade, mas a diversidade linguística está ainda mais ameaçada", afirma Denny Moore, do Departamento de Linguística do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém. Não é exagero. O Brasil tinha cerca de 1.200 línguas indígenas em 1500, segundo um cálculo feito pelo linguista Aryon Dall'Igna Rodrigues, da Universidade de Brasília. Hoje elas não passam de 180. E pelo menos 50 delas são faladas por menos de cem pessoas. Em um levantamento recente, Rodrigues, um dos maiores linguistas brasileiros vivos, calculou em 23 as línguas faladas por até 20 pessoas. "Não se pode esperar que elas sobrevivam mais do que 10 ou 20 anos", estima. Se for levado em conta o critério adotado hoje pela maioria dos pesquisadores -definir como ameaçado todo idioma com menos de 100 mil falantes-, não há língua brasileira que escape. Nem mesmo o guarani, a mais viva de todas, falada atualmente por quase 30 mil índios em sete Estados brasileiros. Apesar da pressão do português, as línguas que serão documentadas no Xingu, à exceção do trumai -que, para piorar, é isolada, ou seja, não tem par no mundo- , ainda não estão nas últimas, devido à proteção oficial do parque. Há casos verdadeiramente dramáticos, como o do máku. O único falante da língua é um viúvo de 70 anos que mora em Boa Vista (Roraima). Seus únicos parentes são dois sobrinhos, um surdo-mudo e outro que também nunca aprendeu o idioma. Outro caso é o da língua baré, do alto rio Negro, sepultada em meados dos anos 90. Havia também um único falante da língua, que estava sendo estudada pela linguista Christiane Oliveira numa tese de mestrado. "Depois que ela defendeu o mestrado e foi planejar o doutorado, o homem morreu", conta Aryon Rodrigues. Segundo o pesquisador, preservar as línguas é fundamental para manter o conhecimento tradicional de cada população. "A língua codifica toda a evolução de um povo e todo o conhecimento que ele desenvolveu", diz Rodrigues. "O português quebrado que o índio aprende não consegue traduzir isso e um capítulo do conhecimento humano se perde", afirma o linguista. Universais Na América do Sul essa perda é ainda mais problemática, porque o continente é o último reduto de fenômenos linguísticos que não acontecem em nenhuma outra parte do mundo -o que pode ajudar os cientistas a reformular muito do que se pensa sobre a natureza da linguagem humana.
O Santo Graal da linguística é a busca pelos chamados universais, as características comuns a todos os idiomas do planeta. Pelo menos dois supostos universais linguísticos foram derrubados pelo estudo de línguas amazônicas nas últimas três décadas.
O primeiro caso foi o do acréscimo de substância na negativa. No jargão dos linguistas, acréscimo de substância é o crescimento da frase pela adição de qualquer elemento. Até meados da década de 70, achava-se que todas as línguas do mundo adicionassem uma partícula equivalente ao "não" para construir uma negativa. "Até que o estudo de uma língua de Rondônia mostrou que, naquele caso, a negação era feita ao contrário, retirando elementos da frase", conta Rodrigues.
Outro universal derrubado foi a ordem básica sujeito-verbo-objeto. Os linguistas achavam que nenhuma língua do mundo tivesse frases onde o objeto ocuparia a primeira posição, até o estudo de uma língua do rio Nhamundá, no Amazonas. "Outras línguas com essa característica foram encontradas depois, mas nunca fora da Amazônia", afirma Aryon Rodrigues.
A documentação (registro de textos, sons e vocabulário) e a posterior descrição da língua (a elaboração de dicionários e gramáticas) podem ajudar ainda a ressuscitar ou fortalecer o idioma.
Cópias de todas as gravações feitas pelos três pesquisadores no Xingu serão repassadas aos índios, para ajudar no ensino das línguas nas aldeias. Que, aliás, tem crescido nos últimos cinco anos. "No caso dos awetis, a idéia de registrar a língua partiu deles", diz Moore.
Com uma boa documentação, mesmo línguas sem nenhum falante nativo podem ser "ressuscitadas". Um caso famoso é o do hebraico, que deixou de ser falado por centenas de anos até tornar-se língua oficial do Estado de Israel, criado em 1948.
Outro é o do tupi, falado no Brasil até 1759 e preservado nas gramáticas dos jesuítas e textos coloniais brasileiros. Graças a esses textos, o professor de tupi da USP Eduardo Navarro vai poder ensinar a língua aos índios potiguaras, da Paraíba, cujos ancestrais falavam tupi no século 16. Se um potiguara daquela época entenderia o sotaque é coisa que não se sabe. De qualquer forma, seus descendentes agradecem.



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