São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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Ciência em Dia

Anencefalia no Supremo Tribunal Federal

Marcelo Leite
colunista da Folha

Todos nascemos para morrer." Essa quase tautologia foi proferida pelo ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal (STF), na quarta-feira, quando a corte derrubou por 7 votos a 4 liminar do ministro Marco Aurélio Mello que autorizava aborto de fetos anencéfalos (sem cérebro). A frase é prova cabal de que a verdade também pode servir para obscurecer, até nas mais altas instâncias da República.
Antes de prosseguir, cabe explicitar que não se discutirão aqui as tecnicalidades jurídicas do caso. Há quem possa fazê-lo com maior competência. E acima delas está a questão ética, assim como acima do Supremo, apesar do nome, está a sociedade, na qual cada cidadão deve ponderar temas desse alcance com a própria cabeça.
É até possível que, considerando abstratamente o problema, o comum das pessoas se renda ao lobby religioso que sustenta ser a interrupção desse tipo desgraçado de gravidez um atentado contra a vida. Tal opinião merece respeito; não acolhida. Como já foi dito à exaustão em editoriais, artigos e até em debate da campanha presidencial nos EUA, a religião privada não deve interferir na regulação da esfera pública.
Como o STF ainda não decidiu sobre o mérito da liminar, é o momento de adotar uma posição vigorosa contra a pretensão de que uma decisão assim autoritária e cruel caiba ao Estado. Ela se baseia numa confusão entre a noção biológica de vida e a noção jurídica de pessoa. É esse deslizamento semântico que permite a um ministro do STF emitir seu juízo sem corar.
O que a posição maximalista do direito à vida tenta evitar, a todo custo, é o reconhecimento definitivo de que toca à sociedade traçar uma linha divisória entre organismo e pessoa. De que ela não está previamente dada. De que pode ser adotada por motivos que pareçam tão justos e piedosos aos olhos de outros quanto os seus próprios.
Um feto anencéfalo não tem chance alguma de sobreviver. Faltam-lhe equipamentos biológicos básicos para se sustentar como organismo e como pessoa. Isso vem a ser muito diferente da morte certa que nos aguarda. Nascemos todos para viver e crescer, antes de morrer.
Outro tática diversionista muito em voga entre juristas é qualificar essa forma de aborto como "eugênica". É outro deslize semântico, ao estilo da propaganda de pior extração. Tenta associar a proposta com a prática nazista de eliminar seres humanos considerados biologicamente inferiores.
De novo, qualquer pessoa sensata pode ver que abortar fetos sem cérebro não tem nada a ver com mandar pessoas para a câmara de gás. É preciso reconhecer como plausível, para muitos, a noção de que um ser assim não seja titular de direitos. O mesmo não se pode dizer de judeus, ciganos, negros ou árabes -a não ser que se instaure nova forma de loucura coletiva.
Por outro lado, é de pessoas, sim, que se trata: das mães. Obrigá-las a carregar no ventre um feto inviável é manifestamente abusivo. Daria um grande documentário se os ministros do STF que votaram contra a liminar pudessem ser constrangidos a proferir seus votos na presença de mulheres nessa condição, olhando em seus olhos.
Muito pior do que morrer sem cérebro é viver sem ele.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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