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ESPECIALISTA BRASILEIRO CONTESTA QUE VÔO DE AMERICANOS EM 1903 TENHA SIDO O PRIMEIRO DA HISTÓRIA DA AVIAÇÃO; PARA ELE, HOUVE UMA MUDANÇA DE PARADIGMA APÓS 1908
Dumont x Wrights
Henrique Lins de Barros
especial para a Folha
O marco é 12 de novembro de 1906. A pergunta: por que antes dessa data, e apesar
dos esforços de muitos inventores, o
avião não havia aparecido no rol dos inventos? E por que, após 12 de novembro de 1906,
vários inventores conseguiam voar?
Em menos de dez anos o avião já era uma máquina de guerra. Mais dez anos e o avião já atravessava o Atlântico e voava na Europa e nas Américas. Na década de 1930, o avião era um meio de
transporte transatlântico. O desafio é responder a
essas questões. A figura central dessa transformação é a do brasileiro Alberto Santos-Dumont.
Outra pergunta, entretanto, surge. Por que Santos-Dumont é rapidamente eclipsado pelos irmãos Wrights, dos EUA?
Não há dúvida de que em fins de 1908 os dois
americanos assumiram uma posição de destaque
e de que o vôo de 17 de dezembro de 1903 passou a
ser considerado o primeiro vôo (embora nunca
tenha sido homologado). Mas isso somente em
1908. O vôo mudou nesse momento, e é interessante entender o que se passou.
O aparelho Flyer de 1903, construído por Orville
e Wilbur Wright, pesava 274 quilos e possuía um
motor de 12 HP. Em 17 de dezembro de 1903, os
dois irmãos realizaram quatro vôos, o último e
mais longo de cerca de 260 metros e 59 segundos
de duração, sob a ação de um vento de cerca de 33
quilômetros por hora.
O aparelho não ultrapassou cinco metros de altura. O vôo teve início em terreno com uma inclinação de aproximadamente 9. A diferença de cota entre o ponto inicial e o final foi superior a algumas dezenas de metros.
Vôo sem milagres
A fotografia do quarto vôo
é muito pouco conhecida. Nela se vê ao longe o
avião já quase tocando o chão. O que chama a
atenção é o fato de vermos uma paisagem de cima, como que tirada de uma pequena elevação, o
que de fato foi. E a conclusão é simples: foi um vôo
descendente, planado e prolongado por um motor. Com o vento ascendente e uma pequena inclinação, podemos entender como o pequeno motor acionando duas grandes hélices pôde fazer o
Flyer voar, pois não há milagres na aviação.
Após o quarto vôo, com o aparelho danificado,
Orville e Wilbur Wright levaram o aparelho colina acima e começaram a discutir sobre o que haviam feito, mas o vento forte tirou o Flyer do chão
e o arrastou, destruindo-o por completo. Não foi
preciso motor para o invento sair do chão.
Sem possibilidade de continuar seus ensaios,
Orville passou um telegrama para o pai: "Sucesso
em quatro vôos quinta-feira manhã. Todos contra vento de 21 milhas iniciados no nível do chão
com potência de motor somente. velocidade média através do ar 31 milhas o maior 57 [sic] segundos informe imprensa local". No dia seguinte, o
"Dayton Daily News" publicou uma nota com o
título: "Meninos de Dayton Emulam o Grande
Santos-Dumont".
Os critérios da Federação
A questão do vôo
era crucial. Era preciso diferenciar um vôo de um
salto, e para isso foram criados critérios que possibilitariam dizer se um novo invento era, de fato,
um avião. Esses critérios foram aceitos pela Federação Internacional de Aeronáutica (FAI), órgão
que foi criado em 1905. Os pontos essenciais diziam que:
1. O aparelho deveria transportar todos os elementos necessários para o vôo. Não seria considerado o vôo assistido por elemento externo
(vento, catapulta, inclinação etc.);
2. O vôo deveria ser completo (decolagem, vôo
propriamente dito e pouso);
3. A prova deveria ser anunciada com antecedência, ser controlada por uma comissão, ultrapassar metas preestabelecidas e ser pública.
Como não satisfez tais critérios, o vôo de 1903
não foi o primeiro. Antes dos Wrights, outros inventores já haviam anunciado ter voado: A. Mozhaiski (1884), C. Ader (1890 e 1897), A. Herring
(1898), G. Whitehead (1901) e R. Pearce (1903),
entre outros. Cada um deles trafegou no ar. Nenhum, entretanto, realizou vôo completo e homologado.
As notícias eram sensacionalistas, como a que
apareceu no "Dayton Daily News". Em todas essas ocasiões, as manchetes não deixavam dúvida:
o avião havia sido inventado.
O tempo mostrou que esses feitos careciam de
elementos essenciais. Os aparelhos não eram capazes de decolar, não tinham estabilidade ou simplesmente realizaram um único vôo em condições não controladas. Compreendendo os critérios, por outro lado, entende-se a razão que levou
os irmãos Wrights a suspenderem seus ensaios
poucos dias após a criação da FAI, uma vez que
nenhum de seus vôos (realizados entre 1903 e
1905) haviam sido homologados, pois não satisfaziam as condições.
Sem influência
Até 1908 os Wrights não influenciaram o desenvolvimento do avião. Foram
importantes no vôo planado no período de 1900 a
1903, mas os vôos motorizados realizados por eles
em nada influenciaram os demais inventores,
simplesmente porque não divulgaram qualquer
informação (planos, descrição, fotos etc.) de nenhum de seus aviões antes de 1908.
Em 1908, quando os Wrights finalmente se
apresentaram em público, eles possuíam um aparelho bastante mais avançado do que o de 1903.
Era um aperfeiçoamento do artefato de 1905, influenciado pelo trabalho dos outros inventores,
capaz de se manter no ar por um grande tempo.
De fato, em fins de 1908 Wilbur conseguiu realizar
um vôo de 124 quilômetros de extensão com um
aparelho que dependia do vento intenso ou da catapulta para levantar vôo. Mas nessa época os inventores já sabiam decolar e manobrar no ar.
Em setembro de 1906, Santos-Dumont realizou
um pequeno salto com seu primeiro avião, o 14-bis: "O dia 13 de setembro de 1906 será doravante
histórico, pois, pela primeira vez, um homem elevou-se no ar por seus próprios meios... e essa é
uma vitória importante para os partidários do
"mais pesado que o ar" " (como relatou a publicação "La Nature", em 1906).
Prêmios
Em 23 de outubro, Santos-Dumont
conseguiu voar 60 metros decolando com o 14-bis. Ganhou o Prêmio Archdeacon. Em 12 de novembro, após realizar vários vôos em três sessões
("tentativas", como consta das atas), realizou o
vôo de 220 metros e ganhou o Prêmio do Aeroclube da França.
Foram o primeiro vôo homologado da história
da aviação e os primeiros recordes de distância e
velocidade. "A quarta tentativa foi feita no sentido
inverso das três anteriores. O aviador saiu contra
o vento... O aparelho, favorecido pelo vento de
proa e também por uma leve inclinação, está quase que imediatamente em vôo. Desfila apaixonadamente, surpreende os espectadores mais distantes, que não se acomodaram a tempo. Para evitar a multidão, Santos-Dumont aumenta a incidência e ultrapassa seis metros de altura." ("L'Aerophile", 1906)
Em 13 de janeiro de 1908, H. Farman decolou e
realizou um vôo circular de um quilômetro, mostrando que era possível controlar no ar um aparelho capaz de sair pelos próprios meios do chão. E,
se o avião decolava e era controlado, a atenção de
todos se voltou para a parte aérea do vôo.
Só então os Wrights se apresentaram e fizeram
um enorme sucesso. Mas o que mostravam não
era um avião, como relatou entusiasmado uma
das mais importantes testemunhas oculares, F.
Peyrey, ao ver as primeiras demonstrações de
Wilbur na França, em 1908: "No tipo Wright, as
rodas são proscritas. Seu modo de partida suprime os pesados chassis... É a realização dos partidários dos helicópteros e dos ornitópteros" ("La
Vie au Grand Air", 1908).
A conclusão é simples: em 1908 houve uma mudança de paradigma na questão do vôo. A decolagem ficou em segundo plano, e o que passou a interessar foi a permanência no ar.
Contrato leonino
O segundo parágrafo da
cláusula contratual do termo de doação do Flyer
(1948) à Smithsonian Institution diz o seguinte:
"Nem a Smithsonian nem seu sucessor, ou
quaisquer museu, agência, birô ou instalações administrados para os EUA pela Smithsonian Institution, ou seus sucessores, podem publicar ou
permitir ser exposta uma afirmação ou letreiro
em conexão ou com respeito a qualquer modelo
de avião ou projeto anterior ao aeroplano Wright
de 1903, reivindicando que tal avião tenha sido capaz de carregar um homem e seu motor num vôo
controlado."
Com esse contrato fica realmente impossível a
Smithsonian admitir que o vôo de 1903 não foi o
primeiro vôo da história.
Henrique Lins de Barros, físico, é pesquisador titular do
CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) e autor do livro
"Santos-Dumont e a Invenção do Vôo" (Jorge Zahar Editor,
2003)
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