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Micro/Macro
O tempo e a mente
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
O americano William James, em seu
livro "Princípios da Psicologia", de
1890, criou o conceito do fluxo de consciência -que tanto influenciou escritores como Virginia Woolf e James Joyce- para descrever o funcionamento da
mente. A imagem sugere o fluir de um
rio, um pensamento dando lugar a outro
continuamente. Ao mesmo tempo, James se perguntava se essa continuidade
não era uma fabricação da mente, que
coordenava uma quantidade enorme de
estímulos internos e externos, simulando de alguma forma uma percepção contínua da realidade.
Nesse caso, a nossa percepção do passar do tempo, desde o seqüenciamento
de fenômenos externos, como o passar
de um carro, até o mundo psicológico interno, seria uma ilusão criada pela mente. Feito um filme, que nos dá a ilusão de
continuidade, mesmo que seja feito da
rápida passagem de uma seqüência de
imagens. Henri Bergson, 20 anos após
James, usou essa analogia.
Quando o estímulo é externo, uma
borboleta passando à sua frente quando
você está sentando em uma praça, fica
mais fácil pensar na questão. Se nossa visão capta imagens seqüencialmente, como uma câmera fotográfica, então o cérebro tem de fundi-las, criando a sensação da continuidade do movimento.
Tudo mundo sabe que o olho não é capaz de captar movimentos muito rápidos. Basta olhar para um ventilador ligado: você não vê as lâminas da hélice, mas
um disco amorfo. O mesmo com uma
calota de um carro em movimento.
Em certas doenças neurológicas e até
em fortes ataques de enxaqueca, uma
pessoa pode perder esse poder de fusão,
passando a perceber a realidade como
uma sequência de momentos distintos.
Em outras, a percepção é como uma daquelas superposições fotográficas em
que se vêem vários estágios intermediários de um movimento, como sob uma
luz estroboscópica em uma boate.
O médico e escritor Oliver Sacks conta
a história de uma paciente que, de vez em
quando, perdia completamente a noção
da passagem do tempo. O tempo, para
ela, simplesmente congelava. Ela começava a encher a banheira d'água, e quando voltava a si a banheira estava transbordando. Durante esses surtos, a sua
consciência congelava, enquanto as funções automáticas do sistema nervoso
(respiração, batida do coração, ficar de
pé) continuavam normalmente.
Esse e outros casos mostram que o fluxo da consciência não é exatamente como um rio: ele pode ser suspenso por minutos ou mesmo horas a fio. A percepção
do tempo está intimamente ligada ao
mecanismo pelo qual o cérebro compila
e combina os sinais e impulsos recebidos
pelos cinco sentidos, transformando-os
no que chamamos de realidade. Entender os detalhes dessa operação é um dos
grandes desafios para os cientistas cognitivos e os filósofos da mente. Um conceito que tem sido bastante usado é o de
"populações neuronais".
O cérebro tem em torno de 100 bilhões
de neurônios. Mais importante ainda,
cada neurônio pode ter até 10 mil sinapses, as pontes que o ligam a outros neurônios. Dependendo dos estímulos, sinapses podem ser ativadas ou não. Essa
capacidade dá enorme plasticidade ao
cérebro, que pode ser transformado por
meio de ligações ativadas entre grupos
de neurônios, criando populações que
trabalham em sincronia. Diferentes populações respondem a diferentes estímulos, como grupos de instrumentos
em uma orquestra, que respondem a diferentes movimentos do maestro.
Segundo essa visão, o que chamamos
de mente é a coreografia de vários grupos de neurônios em resposta a estímulos externos e internos. Certos cientistas
cognitivos acreditam que a memória de
algum evento ou sensação seja conseqüência da estimulação de um determinado conjunto de neurônios e sinapses.
Quando você vê, come ou ouve, um determinado grupo de neurônios e sinapses é ativado. O mesmo estímulo (ou parecido), e você "lembra" ter visto, comido ou ouvido aquilo antes. O que chamamos de realidade é altamente pessoal,
produto de como cada cérebro ressoa
com o que percebe e com o que lembra.
Faça o teste: compare a sua descrição do
mesmo evento -a borboleta passando à
sua frente- com a de um amigo. Os detalhes de cada narrativa serão únicos,
mesmo que o evento seja o mesmo. Cada
pessoa vê a sua borboleta.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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