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Marcelo Gleiser
Conciliando ciência e religião
A função da ciência
não é atacar Deus, mas oferecer uma descrição do mundo mais completa
Para muitos, ciência e religião estão permanentemente em guerra. Desde a famosa crise entre
Galileu Galilei e a Inquisição, no século 17, quando o cientista foi forçado a
abjurar sua convicção de que o Sol e
não a Terra era o centro do cosmo, razão e fé aparentam ser incompatíveis.
Aos crentes, a religião oferece não só
apoio espiritual em momentos difíceis e uma comunidade fraterna e acolhedora mas também respostas à
questões de caráter fundamental e
misterioso, como a origem do Universo, da vida ou da mente.
Na sua maioria, as respostas são relatadas em textos sagrados, escritos
por homens que recebem a sabedoria
por meio de um processo de revelação
sobrenatural, de Deus (ou dos deuses)
para os profetas. Para as pessoas de fé,
é absurdo contestar a veracidade desses textos, visto que são expressão direta da palavra divina.
A atitude descrita acima faz parte da
ortodoxia de muitas religiões. Nem todos os crentes adotam uma posição
tão radical com relação à veracidade,
ou literalismo, dos textos sagrados.
Uma posição mais comum é interpretar os textos como representações
simbólicas, um corpo de narrativas
dedicadas a construir uma realidade
espiritual baseada em certos preceitos
morais. Galileu criticou os teólogos
católicos, dizendo que a função da Bíblia não é explicar os movimentos dos
planetas mas como obter a salvação
eterna. ("Não é explicar como os céus
vão, mas como se vai para o Céu.")
A adoção de uma postura menos ortodoxa permite uma visão de mundo
menos radical, onde a religião e a ciência podem viver em harmonia, cada
uma cumprindo sua missão social. O
conflito entre as duas não é, de forma
alguma, necessário. Basta saber distinguir o que uma ou outra pode e não
pode fazer. Isso serve também aos
cientistas, em especial aos que têm
atitudes ortodoxas contra a religião.
Acho extremamente ingênuo imaginar ser possível um mundo sem religião. Ingênuo e desnecessário. A função da ciência não é tirar Deus das
pessoas. É oferecer uma descrição do
mundo natural cada vez mais completa, baseada em experimentos e observações que podem ser repetidos ou ao
menos contrastados por vários grupos. Com isso, a ciência contribui para
aliviar o sofrimento humano, seja ele
material ou de caráter metafísico.
A distinção essencial entre ciência e
religião está no que cada uma delas
pressupõe ser a natureza da realidade.
Enquanto a religião adota uma realidade sobrenatural coexistente e capaz
de interferir com a realidade natural,
a ciência aceita apenas uma realidade,
a natural. Aqui aparece a razão principal do conflito entre as duas. Para a
ciência não é preciso supor que o que
ainda não é acessível ao conhecimento necessite de explicação sobrenatural. O que não sabemos hoje pode, em
princípio, vir a ser explicado no futuro. Em outras palavras, a ciência abraça a ignorância, o não-saber, como
parte necessária de nossa existência,
sem lançar mão de causas sobrenaturais para explicar o desconhecido.
Sem dúvida, esse tem sido o seu caminho: explicar de forma clara e racional um número cada vez maior de
fenômenos naturais, do funcionamento dos átomos à formação de galáxias e a transmissão do código genético entre os seres vivos. As tecnologias
que tanto definem a vida moderna, da
revolução digital aos antibióticos, dos
meios de transporte ao uso da física
nuclear no tratamento do câncer, são
fruto desse questionamento. Negar isso é tentar olhar para o mundo de
olhos fechados.
A conciliação entre ciência e religião só ocorrerá quando ficar claro o
papel social de cada uma. Negar uma
ou outra é ignorar que o homem é tanto um ser espiritual quanto racional.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim
da Terra e do Céu"
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