São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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Fatos fundadores

Gabriela Romeu - 13.fev.2002/Folha Imagem
Pinturas rupestres no Boqueirão da Pedra Furada, um dos sítios arqueológicos mais célebres do Brasil, na serra da Capivara, Piauí


Arqueólogo da Universidade Federal de Minas Gerais monta panorama da pré-história brasileira em livro para leigos

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Deixe a camisa canarinho de lado por alguns momentos e pense um pouco em um outro tipo de identidade nacional. Uma que não corre o risco de se dissolver em 90 minutos nos pés de um atacante adversário, porque foi forjada ao longo de mais de 12 mil anos. Que remete a muito antes do futebol e da colonização européia, a tempos em que não havia uma, mas dezenas ou centenas de nações distintas, de línguas e culturas diferentes, ocupando o território que depois convencionou-se chamar Brasil. Encontre o Brasil de antes dos brasileiros.
O convite é feito num livro recém-lançado por um pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais. Um convite duplamente paradoxal. Primeiro, porque chama os brasileiros a se identificarem com o passado não de uma nação mas de uma Babel. Depois, porque é feito ele mesmo por um "estrangeiro": o francês André Pierre Prous Poirier, um dos grandes nomes da arqueologia... brasileira.
As aspas se justificam. Apesar da origem, Prous, 62, está radicado no Brasil desde os anos 1970 e por aqui construiu toda a sua carreira acadêmica. Ele integrou a célebre missão francesa liderada por Annette Laming-Emperaire que desenterrou em 1974, numa gruta na região de Lagoa Santa, Minas Gerais, o crânio de Luzia, um dos mais antigos restos humanos das Américas. Desde então, tem se firmado como um dos maiores conhecedores da pré-história do Brasil Central.
Em "O Brasil Antes dos Brasileiros", o sisudo Prous tenta pela primeira vez compartilhar as emoções de sua profissão com o público leigo. A iniciativa é louvável, mas o resultado acaba sendo tão empolgante quanto uma partida da sua nativa França na Copa de 2002.
Para seu crédito como cientista -e demérito como divulgador de ciências-, o arqueólogo deixa muito claro de saída que não fará especulações nem mergulhará em controvérsias.
O livro é um panorama seco da pré-história brasileira, começando com o homem de Lagoa Santa e terminando nas chamadas sociedades complexas da Amazônia. Para traçá-lo, Prous se limita às evidências sólidas -e algo escassas- do registro arqueológico nacional: ferramentas de pedra, ossos mal-preservados pelo clima úmido do país, fragmentos de cerâmica, pinturas rupestres. Embora admita que não há "fatos objetivos" na arqueologia, apenas interpretações decorrentes do viés do cientista ao ler o registro enterrado, o francês se recusa ele mesmo a partilhar essa subjetividade.
Sua obra é descritiva, altamente informativa, quase cartesiana. Em nada lembra os escritos empolgados -e abertamente especulativos- da americana Anna Roosevelt sobre as chefaturas amazônicas, que, se podem dar margem a discussão de um lado, de outro ganham em vivacidade e atualidade ao tratar povos indígenas pré-cabralinos sobre os quais se sabe muito pouco como sociedades ou culturas. Prous os chama de "tradições" culturais.
O francês também se furta a discutir em detalhe grandes polêmicas da arqueologia brasileira atual: a questão da presença de sociedades complexas na Amazônia, a cada vez menos polêmica filiação de Luzia e da "raça" de Lagoa Santa com povos não-mongolóides e as datações dos vestígios humanos no Piauí -motivo de um processo movido contra ele por sua patrícia Niède Guidon, a arretada diretora do Parque Nacional da Serra da Capivara.

Descendo do salto
O livro começa a ficar interessante mesmo no último capítulo, que vale a obra. É justamente quando o francês desce da banqueta da objetividade professoral e ensaia pôr o dedo nas mazelas da arqueologia brasileira, no sentido largo: os "mitos redutores", como o evolucionista (a progressão obrigatória de bando a Estado) e o do "índio ecologista", e a arqueologia de contrato, que esvazia a pesquisa acadêmica.
Apesar dos momentos tediosos, o livro se presta a uma introdução rápida à pré-história. Mas vale mais a pena mergulhar no clássico de Prous "Arqueologia Brasileira", de 1990. O catatau (613 páginas na edição mais recente, de 2003) não é muito mais difícil de ler do que "O Brasil Antes dos Brasileiros" e possui uma riqueza de informações que o torna parada obrigatória em qualquer viagem a tempos pré-cabralinos. Este sim, um gol de placa.

LIVRO - "O Brasil Antes dos Brasileiros - A Pré-História do Nosso País" André Prous; Jorge Zahar Editor; 144 págs. R$ 29


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