São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 2001

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ARQUEOLOGIA

Cientistas dizem que legislação brasileira é inconstitucional

Nova lei abre debate sobre as relíquias subaquáticas

FERNANDA KRAKOVICS
DA AGÊNCIA FOLHA

Arqueólogos brasileiros estão acusando o governo federal de estimular uma "caça ao tesouro" em navios naufragados na costa do país, por estar oferecendo recompensa pela recuperação de bens submersos. O motivo da preocupação da SAB (Sociedade de Arqueologia Brasileira) é a lei número 10.166, que foi sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em dezembro.
A entidade encaminhou à Procuradoria Geral da República pedido de verificação de inconstitucionalidade da lei. O ponto principal da polêmica é o artigo que prevê o pagamento de recompensa até o limite de 40% do valor de mercado atribuído às peças.
Agora também é permitido que empresas e pessoas físicas estrangeiras realizem pesquisa, exploração, remoção ou demolição de bens submersos. Tanto as empresas e pessoas físicas estrangeiras quanto as nacionais precisam ser autorizadas pela Marinha, após apresentação de projeto de trabalho, para explorar os naufrágios.
A antiga lei permitia que exploradores ficassem com parte dos bens, desde que não tivessem valor artístico, histórico e arqueológico. Essa cláusula continua em vigor, mas agora está previsto na lei o montante que pode ficar com o concessionário. No caso, o explorador pode ficar com até 70% do que for encontrado, sem que valores estejam definidos por lei.

Fora de contexto
"Peças arqueológicas em si mesmas nada significam. O que lhes confere significado é o contexto em que são encontradas. Ao serem removidas por pessoas despreparadas, são eliminadas todas as possibilidades de estudo e de produção de conhecimento sobre o passado", diz a presidente da SAB, Tania Andrade Lima.
O capitão-de-mar-e-guerra Luiz Fernando Palmer Fonseca, do setor de Comunicação da Marinha, disse que a alteração da lei visa estimular a pesquisa. "A legislação que estava em vigor trazia consideráveis prejuízos à União, que dessa forma perdia bens de valor artístico, histórico e arqueológico que são de sua propriedade", disse.
Fonseca também não considera que esteja havendo um estímulo à dilapidação. "Espera-se que essas modificações aprovadas, ao estimularem a pesquisa, estimulem uma redução nas perdas de bens de valor artístico, histórico e arqueológico que agora ocorrem."

Inconstitucional
Para a SAB, a nova lei é inconstitucional. "De acordo com a Constituição, bens arqueológicos são patrimônio da União e, como tais, pertencem ao povo brasileiro, sendo portanto inalienáveis. Não se pode atribuir valor de mercado ao que não pode ser posto à venda", disse Tania Lima.
Para o mergulhador e técnico em arqueologia subaquática Marcello De Ferrari, há muitas brechas na lei e os critérios não estão claros. "Alguns países estabelecem que peças de ouro com alguma marca gravada têm valor histórico, já outros não consideram o ouro como histórico", afirmou.
Os objetos serão avaliados por uma comissão com três membros da DPHCM (Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha) e três membros indicados pelo Ministério da Cultura. A presidência será da Marinha.
Para Tania Andrade Lima, a Marinha não deveria ficar com a última palavra no processo. "Essa deveria ser uma atribuição do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que dispõe de corpo técnico especializado para essa finalidade", declarou a presidente da SAB.

Regras internacionais
O Icomos (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), grupo de especialistas que determina junto à Unesco as diretrizes para a preservação do patrimônio cultural subaquático, considera a exploração de sítios arqueológicos para venda incompatível com sua proteção e sua gestão. Essa é uma das cláusulas da Carta Internacional do Icomos sobre proteção e gestão do patrimônio cultural subaquático, de 1996.
O representante da entidade no Brasil, Gilson Rambelli, considera a situação brasileira confusa e preocupante. "O Brasil assinou em 1982 a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que possui artigos que visam a proteção do patrimônio cultural subaquático", disse.
Para o arqueólogo, a sanção da lei 10.166 está na contramão do que foi assinado em 1982. "O mundo inteiro está fechando as portas para esse tipo de atividade de caça ao tesouro, porque, por onde passou, destruiu tudo."



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