São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


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Periscópio

Leveduras filamentosas

José Reis
especial para a Folha

Na revista "Cell", Gerald Fink e colaboradores descreveram achado sem dúvida surpreendente: a presença de formas filamentosas na levedura de cerveja, ao lado das células isoladas, que são as comuns e há muito conhecidas nesses fungos.
Saccharomyces cerevisiae é a mais familiar das leveduras. Suas células são esféricas, elipsoidais ou mais ou menos retangulares. Em condições comuns de observação microscópica, elas não apresentam muitos detalhes. Algumas leveduras se reproduzem por simples divisão, como as bactérias. Na maioria das células, entretanto, a multiplicação ocorre por brotamento: a célula-mãe forma um broto, ou vários, que crescem e afinal se separam da célula original. Pode haver uma fase sexual.
Saccharomyces é agente de fermentação alcoólica, por um processo usado na produção do álcool industrial, do vinho, da cerveja e do pão. Ele consiste na oxidação do açúcar, com formação de álcool e dióxido de carbono, na ausência de oxigênio. As leveduras desempenham papel importante nas pesquisas sobre vitaminas. Há alguns anos, passaram a ser também um dos instrumentos mais utilizados na biologia molecular.
Embora muitos fungos relacionados, como a Candida albicans (agente do sapinho e outras infecções), existam em duas fases, uma unicelular (a levedura propriamente dita) e outra multicelular e filamentosa, que se alternam por complexo mecanismo genético, acredita-se que Saccharomyces possua apenas a forma unicelular, de levedura. Fink descobriu a forma filamentosa, que teria sido perdida com o tempo e a domesticação do fungo. O que não se entende é que essa descoberta só agora tenha sido feita num organismo tão pesquisado.
A explicação desse fato parece consistir em que, nos meios de cultura comuns, há abundância de todos os elementos nutritivos. A forma filamentosa deve decorrer da escassez nutritiva. Essa verificação sobreveio quando Fink pesquisava as pistas ambientais de crescimento a que o Saccharomyces reage. Para apurar os limites do crescimento, os cientistas variaram a quantidade de nitrogênio no meio de cultura. Eliminando-se completamente o elemento, o crescimento cessa. Por isso, eles ofereceram ao micróbio quantidades reduzidas de nitrogênio.
Sobreveio então o inesperado. Em vez de as células apresentarem o fenômeno completo do brotamento, nos meios pobres as células-filhas (brotos) permaneceram presas à ponta da célula-mãe. A seguir, uma nova célula brotou da extremidade da célula-filha e assim por diante, formando-se um filamento de células. As cadeias filamentosas são capazes de cobrir a superfície do meio de cultura (ágar), o que as leveduras isoladas não conseguem fazer.
A capacidade de invadir o ágar leva Fink a sugerir que a filamentização seja um meio de procurar alimento. Os cientistas podem induzir à vontade a mudança de uma fase à outra, mas ainda procuram o exato mecanismo molecular da passagem. Salienta Michelle Hoffman ("Science", 255, 151) que a descoberta de Fink pode constituir importante modelo médico e de genética molecular, uma vez que muitos dos fungos que causam doença em animais e plantas têm uma forma filamentosa, que, em certos casos, é essencial para a invasão do organismo que contrai esses parasitas.
Fink vê sentido na manutenção, pela natureza, do Saccharomyces em estado de subnutrição. Se assim não fosse, o fungo tomaria conta do mundo: uma célula isolada de levedura que se dividisse com velocidade máxima formaria em torno do globo uma camada de cerca de 3 m de profundidade em duas semanas.


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