São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009 |
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+ Marcelo Gleiser Fósseis da Criação
Na semana passada, escrevi sobre dois telescópios espaciais prestes a serem lançados pela Agência Espacial Europeia. Dia 6 de maio, os telescópios espaciais Herschel e Planck iniciarão sua viagem em direção ao local de onde medirão as propriedades do cosmo bebê. Para minimizar a interferência de sinais de micro-ondas da Terra, o Planck terá uma órbita a 1,5 milhão de quilômetros, um centésimo da distância entre a Terra e o Sol. Serão seis semanas até que chegue ao ponto exato, de onde colherá dados por 14 meses. Essencialmente, o satélite é um termômetro extremamente preciso, capaz de medir variações de um milionésimo de grau na temperatura da radiação cósmica de fundo, o fóssil deixado quando os primeiros átomos de hidrogênio foram formados, cerca de 13,8 bilhões de anos atrás. O Planck poderá testar os modelos atuais de como galáxias surgiram a partir da sopa de matéria que preenchia o cosmo em seus primórdios. Para reproduzir as propriedades que medimos do Universo, astrônomos precisam de uma receita extremamente estranha. São três ingredientes principais, fora a radiação cósmica de fundo. O primeiro deles é o mais óbvio: a matéria comum, formada de átomos com prótons no núcleo e elétrons girando à sua volta. É dela que somos feitos, de hidrogênio, carbono e ferro. Segundo a receita atual, essa matéria constitui só 4% do Universo. O próximo ingrediente também é uma forma de matéria, mas que não tem nada a ver com a matéria comum. Essa é a chamada "matéria escura", cujo nome vem do fato de não ser capaz de produzir luz ou radiação de qualquer espécie, como fazem nossas queridas estrelas. Ninguém sabe que matéria é essa. Dezenas de experimentos estão tentando detectá-la, e o grande colisor de partículas na Suíça, o LHC, em breve tentará forjá-la a partir de matéria comum. (É, isso é possível, ao menos em teoria.) A matéria escura, segundo a receita cósmica atual, consiste em aproximadamente 23% do Universo. Os 73% restantes supostamente fazem parte da "energia escura", algo que também desconhecemos, como abordei em várias colunas passadas. Voltando aos modelos que irão ser testados pelo Planck, o mais importante deles descreve a origem das galáxias. Quando astrônomos mapeiam o Universo, observam que as galáxias estão distribuídas como se existissem na superfície de bolhas num banho de espuma: regiões esféricas com pouca matéria, os vazios cósmicos (o interior das bolhas), cercadas de galáxias à sua volta. Como isso ocorreu? Segundo os modelos modernos, são necessários três ingredientes. A matéria comum, claro, que compõe as estrelas e os planetas; a matéria escura; e uma espécie de semente gravitacional, aglomerados de um tipo de matéria exótica que presumivelmente surgiu nos primeiros instantes de existência do cosmo. Essas sementes atraem a matéria escura que, por sua vez, atrai a matéria comum. Bem estranho, eu sei. Por isso o Planck é tão necessário. Segundo os modelos, o Universo bebê expandiu incrivelmente rápido devido a essa matéria exótica. Caso isso tenha ocorrido, a textura do próprio espaço sofreu distorções que se propagaram como ondas desde então. Caso as ondas existam e sejam suficientemente grandes, Planck poderá medi-las. Se tiver sucesso, teremos uma janela para enxergar o Universo quando ele tinha apenas um trilionésimo de trilionésimo de trilionésimo de segundo -muito perto do início de tudo. Essas ondas são o que mais se aproxima de um fóssil da criação. Os próximos 14 meses serão de muita ansiedade para a cosmologia. MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo" Texto Anterior: Grupo elabora mapa global da malária Próximo Texto: Darwin para principiantes Índice |
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