São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

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+ Marcelo Leite

Carvão versus carbono


A terra preta dos índios tornou-se a última moda contra o aquecimento global

Depois dos biocombustíveis, o biocarvão. Ou "biochar", de "biological charcoal", para os colonizados em geral. Mas também pode chamar de terra preta -o milenar produto da ocupação humana da Amazônia, responsável pelos solos mais ricos da região.
Índios, caboclos e arqueólogos sabem o valor das terras pretas. Numa região de solos em geral argilosos e pobres, essas manchas de matéria orgânica dissolvida no terreno garantem uma lavoura farta. Em geral, oferecem também uma rica colheita de artefatos arqueológicos.
Terras pretas ocorrem em áreas ocupadas durante séculos ou milênios por grupos cujos detritos se acumulam no terreno como lixo, muitas vezes queimado, e restos de fogueiras. Com o tempo, esses vestígios orgânicos -numa palavra, carbono- se incorporam ao solo, lado a lado com os cacos de cerâmica, ossos e sementes que ajudam a reconstruir o modo de vida dessas populações extintas.
Estão agora querendo reinventar a roda, quer dizer, a terra preta. Rebatizada como "biochar", tornou-se o último grito da moda contra o aquecimento global.
Funcionaria assim: todo o resíduo da agricultura e da indústria madeireira, em lugar de apodrecer por aí, seria parcialmente queimado, em combustão lenta e imperfeita (pirólise), para fazer carvão vegetal. Mais ou menos metade do carbono termina consumida nessa queima, mas o restante pode ser misturado à terra e nela ficar imobilizado.
Numa visão mais radical, florestas inteiras de pinus ou eucalipto poderiam ser cultivadas, torradas e enterradas. Crescendo, as árvores sorvem da atmosfera dióxido de carbono -CO2, principal gás agravador do efeito estufa, cuja concentração está aumentando por força da indústria humana. Ao virar carvão, parte desse CO2 recapturado poderia acabar sepultado debaixo da terra.
A repetição do processo permitiria diminuir ou pelo menos estabilizar a concentração de CO2 na atmosfera. O homem poria de um lado, queimando combustíveis para produzir energia e mover a economia planetária, e tiraria de outro, produzindo terra preta como índios há muito enterrados em suas maravilhosas urnas funerárias.
Há alguma justiça poética na proposta. Reviver o passado (orgânico) para garantir o futuro (energético). Não é muito diferente da ideia de plantar cana ou mamona para extrair combustível e poder continuar parados em engarrafamentos, cercados por dez airbags.
Pesquisadores da Embrapa mergulharam de cabeça na história. Já existe também uma Iniciativa Internacional pelo Biochar (IBI, na sigla em inglês). O pessoal da solução "pretinho elegante", ou "energia tribal", até calculou quanto carbono daria para sequestrar à moda tapajônica e marajoara.
No mínimo, um quarto de bilhão de toneladas (Gt) por volta de 2030. Na hipótese mais otimista, 1 Gt em 2040, ou um sétimo do que é necessário poupar até meados deste século para manter as emissões de carbono no nível de 2004 (mas há quem fale em até 10 bilhões de toneladas por ano). De quebra, ocorreria uma gigantesca recuperação de solos mundo afora.
Claro que há gente contra. Assim como no ataque aos biocombustíveis, argumenta-se que a demanda por biochar desviará 5 milhões de km2 de terras -algo como 60% do território brasileiro- da produção de alimentos para o mercado de commodities.
No pior cenário, florestas primárias é que virariam fumaça. Como as grandes chefaturas do rio Tapajós e da ilha de Marajó.


MARCELO LEITE é autor de "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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