São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2008

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+ Marcelo Leite

Paranóia e mistificação


A batalha contra o portal Periódicos, como a de Itararé, não houve

A coluna "Ciência para Todos", aqui publicada há três semanas, saiu pela culatra. Era para defender a utilidade de pôr à disposição do público o conhecimento científico produzido no Brasil. Em lugar disso, detonou uma campanha surreal em defesa do portal Periódicos (www.periodicos.capes.gov.br), que supostamente teria sido atacado.
Para que não paire dúvida sobre o absurdo da suposição, eis o que dizia a coluna: "Há duas iniciativas [no Brasil] que lutam a duras penas para aumentar o acesso público aos resultados da ciência: os portais Periódicos e SciELO". Além disso: "A Capes segue a via convencional de garantir acesso de cientistas brasileiros, em bloco, ao texto de 11.419 "journals" do mundo todo, ferramenta de pesquisa bibliográfica que se tornou indispensável".
Só a paranóia permite enxergar nessas frases um ataque ao portal da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão do Ministério da Educação).
O texto dizia mais sobre o portal: "A cada ano, [a Capes] arranca acordos milionários -das editoras, de um lado, e da equipe econômica do governo federal, de outro- para o que na realidade é um acesso restrito (só pesquisadores podem ler e baixar os artigos científicos recentes)".
A afirmação final sobre acesso restrito continha uma imprecisão: na realidade, a página Periódicos pode ser alcançada de qualquer computador de 188 instituições de pesquisa com programas de pós-graduação.
Portanto, não só por pesquisadores, mas também por estudantes, funcionários e qualquer cidadão que tenha acesso às máquinas.
Já a caracterização como "acordos milionários" é precisa: Periódicos custa US$ 35 milhões por ano ao governo brasileiro. É caro? Não, para uma "ferramenta de pesquisa bibliográfica que se tornou indispensável". Como explicita um comunicado da Capes de crítica à coluna, isso dá 70 centavos de dólar por artigo baixado e lido por cientistas brasileiros -uma verdadeira pechincha.
O que parece ter deflagrado a campanha foi a menção conjunta, em apenas uma frase (ainda que elogiosa), aos portais Periódicos e SciELO (www.scielo.br). Parte da comunidade científica encara as iniciativas, de maneira míope, como concorrentes.
Não são: a primeira se dedica à necessária tarefa de dar acesso ao melhor conhecimento científico produzido no mundo; a outra, a divulgar ciência produzida no Brasil.
A SciELO (abreviação em inglês de Biblioteca Científica Eletrônica Online) é o que mais se aproxima por aqui de um novo modelo de publicação científica, o acesso aberto, ou livre (em inglês, "open access"). O custo de produção -no caso da PLoS (www.plos.org), até US$ 3.000 por artigo- é pago pelos autores, isentados porém da tarifa se declararem não ter recursos.
Só uma dose de mistificação vitaminada com paranóia permite ver no acesso aberto uma conspiração mafiosa contra o portal da Capes. É a mesma lógica que já levou alguns pesquisadores a trocar mensagens eletrônicas chamando de "safado" e "desonesto" o jornalismo da Folha por publicar em 10 de novembro artigo contra a experimentação com animais, supostamente sem cogitar de convidar algum cientista para escrever o contraponto na mesma edição.
O artigo contra havia sido acompanhado, sim, de outro a favor -no alto da mesma página. Embora cientistas, meteram-se a julgar antes de constatar os fatos. É o mesmo que se vê agora, na batalha contra o portal da Capes que, como a de Itararé, não houve.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net ). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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