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+ Marcelo Leite
Paranóia e mistificação
A batalha contra o portal Periódicos, como a de Itararé, não houve
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A coluna "Ciência para Todos",
aqui publicada há três semanas, saiu pela culatra. Era para
defender a utilidade de pôr à disposição do público o conhecimento científico produzido no Brasil. Em lugar disso, detonou uma campanha surreal
em defesa do portal Periódicos
(www.periodicos.capes.gov.br),
que supostamente teria sido atacado.
Para que não paire dúvida sobre o
absurdo da suposição, eis o que dizia a
coluna: "Há duas iniciativas [no Brasil] que lutam a duras penas para aumentar o acesso público aos resultados da ciência: os portais Periódicos e
SciELO". Além disso: "A Capes segue a
via convencional de garantir acesso de
cientistas brasileiros, em bloco, ao
texto de 11.419 "journals" do mundo todo, ferramenta de pesquisa bibliográfica que se tornou indispensável".
Só a paranóia permite enxergar nessas frases um ataque ao portal da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão
do Ministério da Educação).
O texto dizia mais sobre o portal: "A
cada ano, [a Capes] arranca acordos
milionários -das editoras, de um lado, e da equipe econômica do governo
federal, de outro- para o que na realidade é um acesso restrito (só pesquisadores podem ler e baixar os artigos científicos recentes)".
A afirmação final sobre acesso restrito continha uma imprecisão: na
realidade, a página Periódicos pode
ser alcançada de qualquer computador de 188 instituições de pesquisa
com programas de pós-graduação.
Portanto, não só por pesquisadores,
mas também por estudantes, funcionários e qualquer cidadão que tenha
acesso às máquinas.
Já a caracterização como "acordos
milionários" é precisa: Periódicos custa US$ 35 milhões por ano ao governo
brasileiro. É caro? Não, para uma "ferramenta de pesquisa bibliográfica que
se tornou indispensável". Como explicita um comunicado da Capes de crítica à coluna, isso dá 70 centavos de dólar por artigo baixado e lido por cientistas brasileiros -uma verdadeira
pechincha.
O que parece ter deflagrado a campanha foi a menção conjunta, em apenas uma frase (ainda que elogiosa),
aos portais Periódicos e SciELO
(www.scielo.br). Parte da comunidade científica encara as iniciativas, de maneira míope, como concorrentes.
Não são: a primeira se dedica à necessária tarefa de dar acesso ao melhor
conhecimento científico produzido
no mundo; a outra, a divulgar ciência
produzida no Brasil.
A SciELO (abreviação em inglês de
Biblioteca Científica Eletrônica Online) é o que mais se aproxima por aqui
de um novo modelo de publicação
científica, o acesso aberto, ou livre
(em inglês, "open access"). O custo de
produção -no caso da PLoS
(www.plos.org), até US$ 3.000 por
artigo- é pago pelos autores, isentados porém da tarifa se declararem não
ter recursos.
Só uma dose de mistificação vitaminada com paranóia permite ver no
acesso aberto uma conspiração mafiosa contra o portal da Capes. É a mesma lógica que já levou alguns pesquisadores a trocar mensagens eletrônicas chamando de "safado" e "desonesto" o jornalismo da Folha por publicar em 10 de novembro artigo contra a
experimentação com animais, supostamente sem cogitar de convidar algum cientista para escrever o contraponto na mesma edição.
O artigo contra havia sido acompanhado, sim, de outro a favor -no alto
da mesma página. Embora cientistas,
meteram-se a julgar antes de constatar os fatos. É o mesmo que se vê agora, na batalha contra o portal da Capes que, como a de Itararé, não houve.
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em
Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net ). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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