São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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PALEONTOLOGIA
Pesquisadores afirmam que um anteprojeto de lei do governo federal permitirá a exploração de material

Cientistas criticam legislação sobre fóssil

France Presse
Réplica do Santanaraptor, dinossauro da chapada do Araripe (CE), exposta no Museu Nacional (RJ)


CLAUDIO ANGELO
DA REPORTAGEM LOCAL

A Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) condenou o anteprojeto do novo Código de Mineração Brasileiro, cuja discussão por governos estaduais se encerra amanhã. Segundo a SBP, o texto do código abre a possibilidade de comercialização de fósseis (organismos preservados numa estrutura mineral), hoje proibida.
O código de mineração é o conjunto das leis que regulam a pesquisa e a exploração do subsolo.
O medo dos paleontólogos (estudiosos de fósseis) é que a nova legislação, ao entrar em vigor, possa criar brechas jurídicas para empresas de mineração explorarem e venderem plantas e animais fossilizados, como peixes, insetos, e, por que não, dinossauros.
Mesmo com a legislação atual, considerada restritiva, os sítios paleontológicos brasileiros -que estão entre os mais importantes do planeta- vêm sofrendo uma pilhagem sistemática. Seus fósseis são remetidos ilegalmente ao exterior, onde vão integrar coleções particulares e acervos de museus.
A análise dos artigos do código relacionados ao patrimônio fossilífero indica, segundo a SBP, que há erros técnicos no texto. Ele faz parte do Programa de Reestruturação Institucional do Setor Brasileiro, proposto pelo MME (Ministério das Minas e Energia).
Segundo Ismar de Souza Carvalho, presidente da SBP, um dos artigos do anteprojeto "altera o entendimento de fóssil como bem cultural, dando-lhe um caráter de substância mineral, sujeita a lavra". O artigo afirma que o estatuto regula "os direitos e as obrigações relativos à pesquisa e à lavra dos recursos minerais ou fósseis".
"Há uma confusão entre fósseis e combustíveis fósseis (carvão, betume e turfa), esses, sim, sujeitos a mineração", disse Carvalho.
Considerados parte do patrimônio científico nacional, os fósseis têm sua exploração controlada e fiscalizada desde 1942 pelo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral, ligado ao MME), e nunca foram minerados.
A única exploração comercial aconteceu no Tocantins em 1998, devido justamente a uma interpretação dúbia da lei. Uma empresa obteve autorização para explorar sílex no Estado e, no lugar disso, acabou extraindo cem toneladas de madeira petrificada (que contém sílex) da Floresta Permiana do Tocantins, a maior floresta petrificada do mundo.
O chefe do setor de paleontologia do DNPM, Diógenes de Almeida Campos, admite que o texto é confuso. "Mas não acredito que tenha havido má-fé", afirmou. "A confusão pode ser resolvida só acrescentando a palavra "substâncias" antes de "fósseis"."

Patrimônio à venda
A discussão em torno do anteprojeto do governo parece uma picuinha jurídica. Mas o temor dos pesquisadores se justifica: os sítios paleontológicos brasileiros estão sendo pilhados antes de serem bem conhecidos pela ciência.
Um exemplo é a chapada do Araripe, no Ceará, o principal testemunho geológico do Período Cretáceo (144 milhões a 65 milhões de anos atrás). Suas rochas calcáreas abrigam uma infinidade de insetos, plantas, pterossauros (répteis voadores) e dinossauros.
Foi de lá que saiu o Santanaraptor placidus, o primeiro dinossauro achado com a estrutura tridimensional de seus tecidos moles preservada, descrito em 1999 por Alexander Kellner, do Museu Nacional do Rio de Janeiro.
De lá também saiu mais da metade das espécies de pterossauros descritas. Apesar de estar sentada sobre todo esse patrimônio fóssil, a região do Araripe é uma das mais miseráveis do país.
Na época da seca, quando os empregos temporários na lavoura rareiam, os habitantes da região complementam a renda retirando nódulos calcáreos que contêm fósseis. "Dependendo da raridade, da espécie, do tamanho e do estado de conservação, esses fósseis são vendidos a intermediários por preços que vão de R$ 1 a R$ 1.000", disse José Artur de Andrade, do DNPM do Crato.
Andrade é o único geólogo de que a autarquia dispõe para fiscalizar os cerca de 9.000 km 2 da chapada -quase uma Jamaica.
Essas "commodities" sobem dramaticamente de valor no "mercado" externo. Calcula-se que um único pterossauro vendido no Japão alcance a casa dos US$ 80 mil. "Os fósseis contrabandeados poderiam gerar renda para a população local, por meio do turismo", diz Ismar Carvalho.
O prejuízo dessa "paleopirataria" não é só financeiro. As instituições de pesquisa brasileiras muitas vezes ficam com as lascas dos fósseis, enquanto o filé mignon -espécimes mais completos, grandes vertebrados e espécies ainda desconhecidas- voa para fora do país.
"Comenta-se no meio acadêmico que existem mais de 70 mil exemplares de insetos fósseis do Araripe em coleções do exterior", disse Carvalho. "No Brasil, a estimativa é de 3.000 exemplares, geralmente peças cujos holótipos já foram enviados para o exterior."
Holótipo é a parte do fóssil que contém o animal ou planta petrificado -o principal objeto de interesse científico. Uma prática comum dos traficantes é vender o holótipo e deixar no Brasil o contramolde, que guarda apenas as impressões do organismo.
Descrevendo espécies novas a partir do contramolde, os paleontólogos brasileiros correm o risco de encontrar o mesmo animal já descrito no exterior. "O bicho cai em sinonímia, e o brasileiro faz papel de bobo", disse Carvalho.



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