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Micro/Macro
Reflexões sobre o nada
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Hoje eu gostaria de refletir sobre nada. Ou melhor, sobre o nada. Parece
brincadeira, mas o nada é extremamente
importante na ciência. Entender o nada
não é nada fácil. Em uma "Micro/Macro" antiga, do dia 15 de fevereiro de
1998, escrevi sobre a história do conceito
do nada na física. Os pensadores gregos
da Antiguidade já haviam debatido o
problema, com conclusões completamente opostas.
Enquanto alguns, como os atomistas,
diziam que o nada era fundamental, que
ele existia em pé de igualdade com a matéria que o preenche, outros, como Parmênides e Aristóteles, desprezavam o
nada. Para eles, o cosmo deveria ser "pleno", cheio de uma substância etérea e
imponderável. O nada desapareceu e
reapareceu diversas vezes na história da
física, sempre com relação à questão do
que preenche o espaço. Será que o vazio
existe, no fim das contas?
A física moderna está passando por
momentos difíceis, de crise conceitual.
Isso não é necessariamente algo ruim.
Sem crise, a ciência não avança. Sem
conflitos de opinião não podemos desenvolver novas idéias. O consenso é
inerte. Pois bem, existem duas grandes
visões em jogo, a do mundo microscópico da partículas, os tijolos fundamentais
da matéria, e a do Universo como um todo, a cosmologia. Hoje, sabemos que o
micro não pode ser estudado sem o macro, o que, aliás, justifica o nome desta
coluna semanal. Isso por que as duas teorias que descrevem o mundo do muito
pequeno e o Universo, a teoria quântica e
o modelo do Big Bang, precisam uma da
outra. Não é difícil entender por quê.
O modelo do Big Bang diz que o Universo iniciou a sua história há aproximadamente 14 bilhões de anos, a partir de
um estado inicial extremamente quente
e denso. Sob essas condições não existiam moléculas, átomos ou mesmo núcleos atômicos. As energias eram tão gigantescas que era impossível que duas
partículas pudessem se atrair a ponto de
formar estruturas coesas, como um núcleo (prótons e nêutrons) ou um átomo
(núcleos e elétrons). Bem no início, nem
sequer os prótons e os nêutrons podiam
se formar, a partir da reunião de três
quarks, partículas mínimas que formam
os componentes do núcleo atômico.
Portanto, nos primórdios da história
do Universo, a matéria estava decomposta em seus constituintes mais fundamentais. O problema aparece quando
entendemos que, em cosmologia, qualquer tipo de energia contribui para a
evolução do Universo. E, segundo a física
das partículas elementares, até mesmo o
vazio tem energia. As consequências da
energia do vazio são catastróficas para a
cosmologia.
O que é essa energia do vazio, ou do vácuo? Basicamente, no mundo das partículas nada pode parar. Existe sempre um
movimento residual, que, como todo
movimento, tem uma energia associada.
Daí que é impossível extrair energia de
um sistema de partículas (o que, por
exemplo, fazemos ao congelar algo) até
que a sua energia seja zero. Essa energia
do vácuo é um dos grandes mistérios da
física moderna. Sabemos que ela existe,
mas, se usarmos os métodos tradicionais
para calculá-la, o seu valor seria gigantesco, muito maior do que o aceitável. Em
cosmologia, o seu efeito é acelerar absurdamente a expansão do Universo, transformando-o em um lugar muito mais
vazio do que ele é.
Claramente, algo está errado com esse
cálculo tradicional da energia do vácuo.
Só que não sabemos o quê. Na prática,
supomos que, se fizermos as contas certas, a energia do vácuo deveria ser zero.
Mesmo que essa não seja uma solução
extremamente elegante, ela funcionou
durante décadas. Mas, em 1998 (é por isso que revisito essa questão), astrônomos descobriram que o Universo, afinal,
está em expansão acelerada. Ou seja,
aparentemente existe mesmo uma energia do vácuo, ou algo que funciona da
mesma forma, alimentando a aceleração
cósmica, uma espécie de antigravidade.
O problema é que essa energia do vácuo
é muito, mas muito menor do que a prevista pelos cálculos da física de partículas. Se antes não sabíamos por que o número era tão grande, agora não sabemos
por que o número é tão pequeno. O vazio
continua nos passando a perna.
Essa crise é extremamente bem-vinda.
Ela mostra, de forma direta, a relação entre o micro e o macro, como a física do
muito pequeno influencia a física do
muito grande e vice-versa. Essa nova reflexão sobre o vazio está sendo alimentada por observações astronômicas, e não
por experiências envolvendo partículas.
O que me lembra um pouco Aristóteles.
Ele dizia que o cosmo está cheio de éter, a
quintessência, a matéria que preenche o
vazio. Aparentemente, nós descobrimos
a quintessência. De onde ela vem ou
quais as suas propriedades ainda não sabemos. Mas saber que ela existe é melhor
do que nada.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (Estados Unidos),
e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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