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+ Marcelo Leite
Carbono inorgânico
Agroecologia
está restrita a 2%
da produção
agrícola mundial
A inércia das idéias feitas é a saúva do conhecimento -ou acabamos com ela, ou ela ainda
acabará conosco. O lugar-comum sobre baixa produtividade e alto custo
da agricultura orgânica ("agroecologia" pode ser um nome menos tautológico) é o correlato perfeito da noção
não menos precária de que só a biotecnologia (transgênicos na vanguarda) poderá livrar o mundo da fome.
Nenhuma das afirmações acima foi
ainda adequadamente testada e provada até agora, mas ambas estão na
base das noções predominantes sobre
a agricultura. Enquadrado por essa
moldura de aço, o debate público não
encontra espaço para apreciar conclusões divergentes, como as que emergiram da Conferência Internacional sobre Agricultura Orgânica e Segurança
Alimentar, realizada em Roma, entre
os dias 3 e 5 de maio.
Só agora o relatório final do encontro organizado pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentos e Agricultura) chegou ao conhecimento da coluna.
Pode ser obtido, em espanhol, no
endereço ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/meeting/012/J9918S.pdf. Os
350 participantes de 80 países, filiados
a 66 governos, 45 ONGs, 24 institutos
de pesquisa e 31 universidades, remaram com esforço contra a corrente,
sem nenhuma garantia de que chegariam a algum lugar.
Seu ponto de partida é o paradoxo
do sistema alimentar internacional,
que tem uma face dupla. Primeira: o
suprimento de comida é suficiente para alimentar toda a humanidade, mas
854 milhões de pessoas passam fome
no mundo. Segunda: o uso de insumos
químicos na agricultura não pára de
crescer, mas a produção de grãos caiu
por dois anos consecutivos (1% de
2004 a 2005 e 2,7% de 2005 a 2006).
A turma da conferência em Roma
pode ser quixotesca, mas não rasga estatísticas. Reconhece no documento a
necessidade de aumentar a produtividade da agricultura em 56% até 2030,
só que vê um papel para a agroecologia
nesse desafio.
Pelas simulações, a conversão da
agricultura mundial para padrões orgânicos -que excluem pesticidas e
fertilizantes à base de nitrogênio- resultaria num suprimento de 2.640 a
4.380 quilocalorias diárias por pessoa.
O mínimo recomendado é 2.200.
Não se trata de trocar seis por meia
dúzia. Os defensores da agricultura orgânica sustentam que suas práticas
consomem 33% a 56% menos energia
que a convencional, dobram a quantidade de carbono seqüestrado no solo,
reduzem 48% a 60% as emissões de
CO2 e retêm 20% a 40% mais água no
solo. Ou seja, são muito melhores para
mitigar os efeitos do aquecimento global e da escassez de água que rondam
o planeta.
Seria imprudente tomar essas afirmações por verdades comprovadas.
Elas estão sujeitas, no entanto, a corroboração empírica. Só que a agroecologia permanece restrita a 2% da produção agrícola mundial, se tanto, e
não passa de um gueto exótico nas escolas de agronomia.
Nelas imperam as saúvas biotecnológicas, que podam sem cessar os brotos de um programa de pesquisa comparativa -perfeitamente racional-
sobre a sustentabilidade dos estilos
agrícolas concorrentes.
Diz uma velha máxima do ativismo
político que é preciso ser pessimista
na análise e otimista na ação. Há momentos sinistros, porém, em que a
realidade monopoliza toda a margem
para o pessimismo e ainda condena o
otimista à análise, lodaçal que separa
um oceano de boas intenções e medidas sensatas da terra firme em que homens de carne e osso carbonizam o
próprio futuro.
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em
Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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