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ANÁLISE
Dia sombrio para a história da ciência
MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
Se o anúncio dos exóticos raelianos for verdadeiro -e, mais que
isso, verificável de forma independente-, 26 de dezembro de
2002 entrará para a história da
ciência como um dia sombrio.
Nessa data terá nascido o primeiro ser humano clonado, façanha
técnica que muitos tomarão por
realização da alta pesquisa médica -quando não passa de manifestação sem precedentes da
"hybris" biotecnológica.
Outros tantos verão confirmadas suas previsões conformistas,
segundo as quais era mesmo uma
questão de tempo, que tudo que
pode ser feito pela tecnociência
um dia seria feito, que sempre haverá um paraíso moral onde experimentos com seres humanos não sejam claramente repudiados
nas leis ou pelas consciências. É
por causa desse "laissez-faire"
pseudopragmático que o mal pode ter sido feito, sem apelação.
Mal, com efeito. Não há por que
temer a palavra. Só uma crença
alucinada pode vender como bem
a fabricação de um ser humano
tão diverso dos outros. E são os
cientistas -todos- que carregarão essa mácula, não só os técnicos competentes da Clonaid. Desde o início foi sua neutralidade
míope e interessada que circunscreveu o debate à questão da biossegurança, como se apenas o risco bastasse para erguer as barreiras
éticas e legais a essa aventura.
O erro foi cometido, entre outros, por dois luminares da clonagem por transferência nuclear, Ian Wilmut e Rudolf Jaenisch,
respectivamente o criador de Dolly no Instituto Roslin (Escócia) e um geneticista do renomado Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT, dos EUA).
Eles defenderam em artigo na revista "Science" que os problemas
eram tamanhos que não se justificava o uso humano da técnica.
Ora, riscos são, por definição,
superáveis. A pergunta que deveria ter sido feita -como já defendia há 30 anos o de resto desabusado James Watson- era a seguinte: e se os problemas de segurança fossem resolvidos, seria
permissível fabricar clones? O que
mais, senão a vaidade do pesquisador e/ou do candidato a matriz,
justificaria tal procedimento?
Não faltam argumentos filosóficos e éticos contra a clonagem.
Um dos preferidos, apresentado
por pensadores tão díspares
quanto o norte-americano liberal
Francis Fukuyama e o alemão
frankfurtiano Jürgen Habermas, é
que a clonagem equivale a diminuir a dignidade da pessoa: sua
sequência de DNA não é fruto da
loteria biológica, mas determinada de cabo a rabo, de modo irrecorrível, por outrem.
E não venham dizer que é a
mesma coisa que escolher o nome
ou a escola de um filho, porque
não é. Com o DNA não se discute.
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