São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 2002

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BIOLOGIA

Experimento com luz ultravioleta pode mostrar por que as moléculas básicas dos seres vivos são todas "canhotas"

Brasileiro recria estudo da origem da vida

LNLS/Divulgação
Fonte de luz do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas


SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Um cientista do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas (SP), está planejando refazer um dos experimentos mais célebres da história da biologia, mostrando como os tijolos da vida se formaram a partir de compostos simples. O diferencial é que o novo estudo deve triunfar onde os outros falharam, explicando por que todas as formas de vida do planeta Terra, molecularmente falando, são canhotas.
Esse é um dos grandes mistérios da biologia. As peças que formam todas as proteínas dos seres vivos, os aminoácidos, são moléculas feitas principalmente de carbono que podem vir, por assim dizer, em duas versões. É o que os químicos chamam de quiralidade -o nome escolhido para dizer que elas são espelhadas.
É como olhar para as duas palmas das mãos e reparar que elas são praticamente idênticas, exceto pelo fato de que os dedões de cada uma apontam para lados opostos e os outros dedos estão em posições invertidas em uma mão, com relação à outra.
Em todas as simulações em laboratório do caldo primitivo que teria dado origem à vida na Terra - inclusive no pioneiro experimento de Urey-Miller, feito pelos americanos Harold Urey e Stanley Miller, em 1953-, vários aminoácidos foram produzidos.
Eles surgiam de um conjunto de compostos que deveriam ser os ingredientes primitivos do planeta, quando expostos a luz ultravioleta intensa (como deve ter sido naquela época, sem ozônio para filtrar os raios do Sol).
Os aminoácidos apareceram nas duas formas espelhadas, a canhota e a destra, divididas meio a meio. O resultado era esperado, mas indesejado: a vida só usa moléculas canhotas em sua composição. A grande pergunta: por quê?
"A questão de a vida ser canhota causa perplexidade", diz Arnaldo Naves de Brito, que procura a solução do enigma. Ele acha que o único jeito de induzir os aminoácidos a só adotarem a forma canhota é usar um tipo diferente de luz ultravioleta no experimento -um que também seja canhoto.
O nome técnico é luz circularmente polarizada. Ela pode ser obtida a partir da fonte altamente sintonizada do síncrotron (uma espécie de acelerador que lida com fótons, as partículas da luz) e um conjunto de espelhos. "Pretendemos instalar o último espelho no início de agosto e no fim do mês dar início aos experimentos."

Corrida científica
Brito não é o único pesquisador que está correndo atrás desses resultados. Cientistas da Europa e dos EUA publicaram em março estudos na revista "Nature" reportando a formação de aminoácidos a partir de luz ultravioleta e compostos que simulariam o ambiente interestelar. Os resultados deixaram o brasileiro de cabelo em pé -e com toda a razão.
"Descobrir por que a vida usa aminoácidos canhotos é uma questão básica. Pretendemos a seguir usar luz canhota para ver se ela forma aminoácidos canhotos", revela Max Bernstein, da Nasa, autor do estudo americano.
"Assim que eu vi os resultados na "Nature", achei bom apressar ao máximo a realização de nossos experimentos", conta Brito.
Enquanto americanos e europeus trabalham com a hipótese de que os tijolos da vida teriam se formado no espaço, Brito aposta na formação terrestre. "É algo tão complexo que as duas coisas podem ter ocorrido", ressalva.
Os estudos poderão demonstrar para que lado a balança pesou mais. "Se, ao simular o ambiente terrestre, obtivermos poucos aminoácidos, isso vai fortalecer a hipótese da origem extraterrestre."
De toda forma, as duas hipóteses passam pela luz ultravioleta canhota. Hoje há síncrotrons espalhados pelo mundo que podem fornecê-la, mas, na época em que os aminoácidos precursores da vida surgiram, a natureza não dispunha de todo esse luxo.
Duas teorias tentam explicar a origem desses raios. A mais aceita sugere que cristais no espaço reflitam a luz interestelar de forma a torná-la circularmente polarizada. Outra aponta que a explosão de uma supernova nas cercanias do Sistema Solar poderia ter sido a fonte, há bilhões de anos.
Brito diz que seus experimentos poderão, um dia, fazer essa distinção e dizer, de fato, como os tijolos da vida vieram a ser o que são, gerando a vida canhota no terceiro planeta da estrela Sol.


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