São Paulo, quinta-feira, 29 de abril de 2004

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TECNOLOGIA

Sistema israelense processa sinais de câncer em um tubo de ensaio

Computador de DNA já faz "diagnósticos moleculares"

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Um médico precisa de pelo menos seis anos para se formar na faculdade. Em apenas três, um grupo de pesquisadores israelenses converteu seu computador feito de DNA num médico molecular -um oncologista, para ser exato.
Ao que parece, é mais um recorde para uma pesquisa já acostumada a figurar no Guinness. Mas ainda falta um longo percurso até que o nanomédico saia por aí clinicando. A bem da verdade, nem iniciou a chamada residência.
A premissa, desenvolvida desde 2001 por pesquisadores liderados por Ehud Shapiro, do Instituto Weizmann, em Israel, é fascinante. Ela faz uso das propriedades codificantes do DNA (ácido desoxirribonucléico) para armazenar e processar dados, exatamente como faz um computador.
A molécula de DNA, cuja estrutura foi identificada há 51 anos, tem a forma de uma escada torcida. Cada degrau da escada tem duas "letras" químicas, de quatro possíveis: A, T, C e G (adenina, timina, citosina e guanina). Elas são complementares: um degrau que tenha um A só pode ser complementado por um T; o mesmo vale para C e G. Seqüências específicas dessas letras na fita do DNA compõem os genes -grosso modo, receitas para a síntese de proteínas, que por sua vez fazem todo o trabalho pesado dentro das células dos seres vivos.
Shapiro e seus colegas usam as mesmas ferramentas da natureza na fabricação desse sistema de replicação da receita dos seres vivos, mas com objetivos computacionais. E o sistema mais parece um sopão do que um computador: é uma mistura, em solução aquosa, que combina moléculas de DNA e certas enzimas.
Essas substâncias, responsáveis pela tarefa de agilizar certas reações químicas, atuam picotando a fita do DNA nos pontos certos, de acordo com o que está "escrito" nela. Com isso, processa dados.
O mecanismo foi inspirado por um esquema desenvolvido nos anos 1930 por Alan Turing, matemático britânico que é hoje tido como o pai da ciência da computação. O primeiro teste desse método foi feito três anos atrás, demonstrando a eficiência do DNA como molécula computacional.
Por outro lado, ficou claro que ele não superaria em velocidade os atuais computadores de silício. Ainda assim, vale a pena desenvolvê-los, pelo potencial de aplicações que eles oferecem.
"Por limitações intrínsecas, a computação de DNA não deve ultrapassar a tecnologia do silício", afirma Shapiro em comunicado sobre a pesquisa. "Um paradigma alternativo, perseguido por nosso laboratório, propõe o uso de computadores moleculares para aplicações em que o processamento direto de informação biológica é exigido. Por exemplo, detecção "in situ" e análise de sinais moleculares em organismos vivos é impossível para computadores eletrônicos, pela insuperável incompatibilidade dos materiais envolvidos, enquanto computadores de DNA são construídos de materiais parecidos."

Pulmão e próstata
Foi exatamente o que os pesquisadores acabaram de fazer. Programaram seu computador de DNA para detectar a presença de determinadas moléculas que sinalizam a superativação de genes normalmente ligada a tumores de pulmão e próstata.
Essas moléculas denunciadoras são do chamado mRNA, ou "RNA mensageiro", que serve para levar as receitas contidas no DNA do núcleo da célula até os ribossomos, onde as proteínas serão fabricadas. Ao detectar quantidades anormais desse mRNA delator, o computador produz como resposta uma pequena molécula de DNA cortada ao meio. Ela se encaixa de forma exata ao mRNA que está em excesso, impedindo-o de propiciar a produção da proteína ligada ao câncer.
Os pesquisadores fizeram tudo isso acontecer num tubo de ensaio. Foi a chamada prova de princípio do "médico molecular" -o computador não só faz o diagnóstico como já administra o remédio. "É a primeira demonstração efetiva de uma aplicação possível na vida real desse tipo de computador", afirma o grupo. Mas ainda há um longo e tortuoso caminho até que os nanoengenhos possam sair por aí curando câncer e outras doenças.
Atualmente, a estrutura do computador de DNA é instável num organismo vivo, em que as condições são menos que ideais, e há um verdadeiro tumulto de proteínas e moléculas para todos os lados, realizando uma porção de funções diferentes ao mesmo tempo. "Alguns desses compostos podem apresentar um perigo significativo para os componentes de nosso computador, em sua forma atual, ou, inversamente, nosso computador poderia causar danos a esses componentes intracelulares", dizem os cientistas.

Décadas de pesquisa
"Em outras palavras, nosso protótipo vai exigir ajustes significativos antes que possa ser testado "in vivo". Pode levar décadas até que um computador molecular de diagnóstico completamente seguro, e que possa funcionar por longos períodos, seja produzido e aprovado para uso."
Shapiro apresenta suas visões sobre o futuro, hoje, num congresso em Bruxelas.


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