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Estudo questiona modelos atuais para explicar a ocupação pré-histórica da região
A revolução cultural da Amazônia
Museu Paranaense Emílio Goeldi
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Urna funerária guarita, com figura antropomórfica, pertencente ao acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém (PA) |
Claudio Angelo
da Reportagem Local
Em meio ao caos de sua sala no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, o arqueólogo Eduardo
Góes Neves, 34, ouve Led Zeppelin e vasculha arquivos num laptop. Ao lado do computador,
uma profusão de slides, mapas, livros e cacos de cerâmica. Dentro dele, uma sequência de números que, se
confirmados, podem mudar as teorias sobre a ocupação pré-histórica da Amazônia.
Os tais números são 40 datações de material orgânico
coletado em dois sítios arqueológicos no baixo rio Negro, no Amazonas. Neves coordena escavações na área
há cinco anos, com financiamento da Fapesp. Ele e sua
equipe estudam antigas aldeias indígenas para tentar
entender como surgiram -e por que razão se extinguiram- o que os cientistas chamam de sociedades complexas amazônicas.
A idéia dos pesquisadores era demonstrar que os moradores da Amazônia pré-cabralina, ao contrário dos
índios atuais, tinham raízes bem fixas na região. Sedentários, ocuparam as mesmas áreas durante milhares de
anos e desenvolveram, gradualmente, uma estrutura
sociopolítica baseada na agricultura intensiva e no poder de um chefe sobre várias aldeias. Isso explicaria o
surgimento, na Amazônia, de algumas das cerâmicas
mais elaboradas do continente, como a marajoara.
Essa hipótese seria a confirmação final das teorias
propostas a partir dos anos 60 pelo arqueólogo americano Donald Lathrap e, nos anos 80, por sua conterrânea Anna Roosevelt. A Amazônia até então vista pelos
arqueólogos como um ambiente pobre em recursos
-que jamais sustentaria um grau de desenvolvimento
social maior do que o que se vê entre os índios hoje-
deveria ser tida como um pólo irradiador de cultura.
A idéia começou a ganhar peso em 1991, quando Roosevelt encontrou, no Pará, a cerâmica mais antiga das
Américas, com 8.000 anos de idade. "O lógico seria supor que tenha havido um desenvolvimento progressivo
a partir daquela época", disse Neves à Folha. O processo
teria atingido seu ápice a partir do ano 1000, quando
surgiu a cerâmica policrômica (pintada) na região.
Terra preta
As coisas pareciam fazer ainda mais
sentido porque os quatro sítios escavados pela pesquisa
apresentavam todos profundos depósitos de terra preta. Esse tipo de solo, de cor escura, é resultado da deposição de material orgânico por atividades humanas, como plantações e aldeias, ao longo de muito tempo. Calcula-se que uma camada de 10 cm de terra preta demore
um século para se formar. As aldeias pré-históricas do
baixo Negro têm quase 1 m de terra preta.
Mas a sequência cronológica que Neves começa a desenovelar mostra que o passado indígena da Amazônia
é mais bagunçado que sua sala no museu. As datações
das aldeias Hatahara e Lago Grande, escavadas no ano
passado, vão do século 11 ao século 12. Nesses lugares há
camadas de terra preta de 70 cm de espessura. Pelos cálculos usuais, elas deveriam ter 700 anos de duração.
"Para mim, essas datações foram um choque teórico",
disse Neves. Segundo ele, a cronologia afunda a hipótese da ocupação de longo prazo. Por outro lado, mostra
que a presença humana na Amazônia antiga foi muito
mais intensa do que se imaginava. "Se essa terra preta se
formou assim tão rápido, é porque os caras deveriam
estar em um número muito grande."
Sacrifícios humanos
Os "caras" a quem o pesquisador se refere são um grupo pré-histórico chamado
tradição guarita. Eles produziram uma cerâmica cerimonial elaborada, cujos vestígios são encontrados desde a foz do Amazonas até o rio Napo, no Equador. Ninguém sabe se eles eram um povo só -provavelmente
não- ou se as várias aldeias estavam articuladas por
relações políticas a uma aldeia central, que funcionaria
como uma espécie de "capital".
Quem quer que tenham sido, os guaritas chegaram à
várzea do baixo Negro por volta do ano 1000 da era cristã. E não foram gentis. A sequência arqueológica mostra uma ocupação anterior de baixa intensidade, que vinha se desenvolvendo nos últimos milênios. "A terra
preta surge de repente nos sítios, como se tivesse havido
uma invasão", afirmou Neves.
Nas camadas de baixo foram encontradas três urnas
funerárias com sepultamentos coletivos -mulheres e
jovens enterrados junto com adultos, provavelmente
pessoas de status social diferenciado. Elas podem ter o
significado simbólico de marcar a presença dos novos
ocupantes. "Pode ser também uma evidência de prática
de sacrifícios humanos, comum em outras regiões da
América do Sul", disse Neves. "Mas isso é especulação."
Os sítios guaritas também impressionam pelo tamanho. Hatahara, onde foram encontrados os túmulos coletivos, tem o formato aproximado de um triângulo de
400 m de lado. Calcula-se que a aldeia possa ter abrigado entre 3.000 e 5.000 pessoas -algo difícil de imaginar
na Amazônia atual.
Nada que se compare, no entanto, ao sítio de Açutuba, escavado por Neves e pelos arqueólogos americanos
James Petersen e Michael Heckemberger. Açutuba tem
3 km de extensão e lá foram encontrados vestígios de
uma grande praça pública. Sua cronologia, ao contrário
da dos outros sítios, mostra uma ocupação guarita que
também começa no século 11, mas que vai até o 16.
Terceira via
Os achados nos sítios guaritas não se
enquadram em nenhum dos modelos predominantes
propostos para a arqueologia amazônica. Por um lado,
há evidências de ocupações intensas e -em um dos casos- de 600 anos de duração. Isso bate de frente com a
hipótese da americana Betty Meggers, pioneira da arqueologia amazônica, de que a complexidade social na
região teria sido produto de migrações vindas dos Andes que não "vingaram" devido à pobreza do ambiente.
Por outro lado, as datações dos outros sítios também
desafiam o modelo de Donald Lathrap e Anna Roosevelt, de que a complexidade social teria surgido na região do médio Amazonas e se mantido na forma de
grandes chefaturas -que os antropólogos chamam de
"cacicados"- que teriam evoluído necessariamente
para o Estado, não fosse a conquista européia. "Se o
Lathrap estivesse certo, a cerâmica guarita teria de ter
6.000 anos de idade, e não tem", disse Eduardo Neves.
"Houve, sim, reocupações, mas não do jeito que a Betty
Meggers propõe", afirmou.
Para o pesquisador, a complexidade social na Amazônia surgiu de repente, no baixo Amazonas -provavelmente na ilha de Marajó, no século 4º- e, de lá, teria se
espalhado rio acima a partir do ano 1000. Segundo ele, a
Amazônia teria passado por um longo período de "estabilidade adaptativa": entre o surgimento da primeira
cerâmica, há 8.000 anos, e o da primeira cerâmica policrômica, que aparece em Marajó, teriam transcorrido
seis milênios sem nenhum salto evolutivo.
"Acredito que, nesse tempo, tenha havido uma espécie de seleção natural com as estruturas políticas: elas
eram criadas e selecionadas", disse Neves. "Assim como há espécies que são selecionadas para não mudar,
os sistemas políticos indígenas podem ter sido mantidos do mesmo jeito", comparou.
No século 4º, algum evento teria servido de gatilho para que o sistema de Marajó iniciasse sua expansão para
a calha do Amazonas. Seis estilos cerâmicos se desenvolveram na região só a partir do ano 1000.
"Não estou dizendo que os marajoaras fizeram as malas e subiram o rio para colonizar os outros", brinca Neves. "Prefiro pensar na hipótese de migração de idéias."
Para o arqueólogo, a organização dos cacicados amazônicos ia além de um grupo local. Várias etnias diferentes poderiam estar subordinadas a um único líder.
Relações comerciais e casamentos entre tribos diferentes poderiam também ter contribuído para a expansão
dos sistemas políticos e econômicos.
Neves compara o espalhamento da cerâmica policrômica e da complexidade social pelo Amazonas com a
colonização portuguesa da África no século 16. "Um rei
do interior da África podia ter louça portuguesa sem
nunca ter visto um europeu na vida."
Sistemas instáveis
O estudo dos sítios guaritas
também deve ajudar a entender como os cacicados se
articulavam. Os arqueólogos encontraram vestígios de
grandes paliçadas defensivas nas aldeias pré-históricas,
o que pode significar que a guerra seria um elemento
importante nas relações intertribais.
"Pelas datas que nós temos, parece que os cacicados
eram sistemas políticos muito instáveis, que surgiam e
declinavam ciclicamente" diz Neves.
Mas, segundo o pesquisador, esse declínio se deve
muito mais à fragilidade do poder dos chefes -que, a
julgar pelas paliçadas nas aldeias, deviam estar o tempo
todo em pé de guerra uns com os outros- do que a
agruras do ambiente ou a carência alimentar, como sugere Betty Meggers.
"Talvez o declínio se deva justamente à abundância de
recursos", afirma Neves. Como havia comida sobrando
(peixes e, provavelmente, roças de milho ou mandioca),
não havia a necessidade de um poder central que controlasse a distribuição de alimentos, como nos Andes.
Ao testemunhar a vida curta dos cacicados amazônicos, as novas datações mostram também que eles não
estavam necessariamente fadados a evoluir para Estados, como supôs Anna Roosevelt.
"A Anna Roosevelt tirou uma pedra do caminho, mas
a imaginação dela ainda é colada a modelos deterministas", diz o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional do Rio de Janeiro.
O modelo proposto por Neves (que ele chama, jocosamente, de "viagem"), no entanto, parece só se aplicar à
calha do Amazonas. Também não explica a presença da
sociedade tapajônica, aparentemente um poderoso cacicado que desenvolveu um estilo cerâmico distinto do
policrômico no mesmo período, entre Marajó e o médio Amazonas. "Em relação à Amazônia, ainda estamos
sobre uma ilha de conhecimento cercada de ignorância
por todos os lados", diz Carlos Fausto.
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