São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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Segunda reunião de pesquisadores da América do Sul procura consolidar a ciência no continente
Arqueologia tateante

Lúcia Nagib
da Equipe de Articulistas

É possível uma arqueologia própria da América do Sul? Essa questão esteve no cerne dos debates da "2ª Reunião Internacional de Teoria Arqueológica na América do Sul", ocorrida em Olavarria, Argentina, entre 4 e 7 de outubro deste ano, dando sequência ao primeiro encontro do gênero, realizado em Vitória (ES), em 1998. Ciência ainda tateante na maioria dos países sul-americanos, seu florescimento parece se dar quando na cena internacional a arqueologia atinge o auge do autoquestionamento, sofrendo uma espécie de desmanche. Nesse contexto, em que a maior parte das descobertas arqueológicas se vê negada ou reformulada, as tímidas expectativas de que países sul-americanos pudessem reivindicar para si alguma primazia -por exemplo, possuir em seu território provas do mais antigo povoamento americano- foram desde logo descartadas ou consideradas irrelevantes. Aprimorar métodos: eis a palavra de ordem atual, que se choca frontalmente com o "chauvinismo científico", que, conforme se acredita hoje, está ligado a posições nacionalistas pouco justificáveis. Na verdade, segundo explica o argentino Gustavo Politis, da Universidade de La Plata, um dos organizadores do evento, a divulgação de descobertas ainda questionáveis serve muito mais à opinião pública e à mídia do que à arqueologia enquanto ciência. Ele salienta que "esse chauvinismo é frequentemente uma estratégia usada pelo pesquisador para conseguir recursos por meio dos órgãos de comunicação, criando, fora da arqueologia, uma crença que, entre os arqueólogos, ainda está em debate". Politis acredita ainda que "os meios de comunicação tendem a simplificar a realidade e a exagerar alguns aspectos", e que a arqueologia brasileira estaria particularmente vulnerável a esse fenômeno, como nos casos recentes do crânio de Luzia, encontrado em Minas Gerais, datando supostamente de mais de 11 mil anos atrás, ou dos sedimentos de Pedra Furada, no Piauí, de cerca de 40 mil anos, que poderiam ser de origem humana, ambos tendendo a constituir provas da mais remota ocupação do território americano. "Parece que há uma receptividade maior nos jornais brasileiros, que abordam esses assuntos de uma maneira exagerada. No debate teórico sério e profundo, no sentido de apontar os principais problemas para a arqueologia na América do Sul, encontrar o primeiro americano certamente não é prioritário", conclui Politis. De fato, exposições conclusivas estiveram praticamente ausentes no encontro de Olavarria. Graças às novas técnicas de informática, foram desenhadas inúmeras hipóteses de ocupação do território americano a partir da Ásia. Nenhuma, porém, plenamente comprovável. É o caso, por exemplo, do método apresentado por James Steele, da Universidade de Southampton (Inglaterra), sobre a dispersão dos paleoíndios nas Américas segundo os mecanismos de adaptação cultural a paisagens não-familiares e ecorregiões. Ou o sistema evolucionista dinâmico de José Luis Lanata, da Universidade de Buenos Aires, que sugere a idéia de "corredores" entre espaços previamente ocupados para explicar a rápida dispersão de populações de origem asiática nas Américas. Entre as poucas palestras a apresentar novas descobertas esteve a do arqueólogo da USP Eduardo Góes Neves, que expôs idéias instigantes sobre a ocupação da Amazônia na pré-história, tema até hoje pouco pesquisado. Segundo Neves, o estudo detalhado da cerâmica policrômica das diversas regiões amazônicas sugere uma cronologia e um sistema de dispersão que diferem consideravelmente das teorias desenvolvidas até o presente. Se, por um lado, a região de Marajó parece ser o berço dessa cerâmica na América do Sul -ao contrário das hipóteses difusionistas que apontavam ao oeste do continente como origem-, por outro, o desenvolvimento da policromia tem início bem mais recente do que se acreditava, ou seja, há cerca de 2 mil anos, destruindo a hipótese de que a cerâmica policrômica poderia ser a prova da antiguidade das populações amazônicas que se espalharam pelo resto do continente. Sabe-se, no entanto, que as primeiras atividades ceramistas na Amazônia datam de cerca de 8 mil anos atrás, o que confere nova complexidade ao problema. A pesquisa de Neves tem ainda outros aspectos interessantes, como os referentes à abundância de solos escuros, derivados de atividade humana, e da extensão dos sítios arqueológicos demarcados por sua equipe, um deles com três quilômetros de extensão. Tais fatos provam, por exemplo, a alta densidade populacional da Amazônia pré-histórica, que provavelmente possuía aldeias de vários milhares de habitantes; e sugerem também que boa parte da floresta, considerada natural, na verdade surgiu em solo previamente trabalhado pela ação humana.

Evolucionismo X multiculturalismo
Se os expositores, em Olavarria, evitaram ao máximo conclusões polêmicas, não hesitaram em dar livre curso às suas divergências teóricas. E aqui ficou evidente que a América do Sul ainda carece de idéias próprias, pois as questões teóricas de contundência ficaram polarizadas entre norte-americanos e ingleses. Isso, de resto, deve ser problema conhecido dos organizadores, que não fizeram constar nenhum nome sul-americano para as palestras das sessões plenárias.
Um grande cisma se configurou logo no início do congresso, colocando em lados opostos os adeptos da "multivocalidade" (termo que, na arqueologia, expressa o multiculturalismo e inclui a arqueologia étnica e a de gênero) e os evolucionistas, que seguem a matriz darwinista e são pelos primeiros identificados a um certo conservadorismo de direita -embora os próprios evolucionistas insistam em apontar suas afinidades com o materialismo marxista.
O grupo da multivocalidade esteve representado basicamente por pesquisadores norte-americanos. Joan Gero, da American University, Washington, em comunicação sobre arqueologia de gênero, rechaçou a separação do ser humano em dois gêneros, o feminino e o masculino, e as teorias que lidam com essas categorias na pré-história, considerando-os complementares (quando um gênero complementa o outro em grau de paridade) ou hierárquicos (quando um gênero subjuga o outro). Para Gero -cujos argumentos não disfarçam sua ligação com a multissexualidade contemporânea- várias sociedades pré-históricas admitiam mais de dois gêneros. Ela citou exemplos de nativos norte-americanos, que admitiam um terceiro gênero; de populações amazônicas, que reconheciam a existência de ambos os sexos dentro de um único indivíduo; e dos esquimós, que podiam mudar de sexo ao longo da vida.
Numa segunda comunicação, referindo-se às cronologias do noroeste argentino, Gero contestou os métodos tradicionais de datação de cerâmica, propondo uma cronologia centrada no "ponto de vista do povo" que habitou essa região na pré-história.
A comunicação de Randall McGuire, da Universidade de Binghamton, Nova York, carregou ainda mais nas cores populistas -senão paternalistas. McGuire defendeu sem reservas o princípio de repatriação de ossadas às populações nativas norte-americanas -o que é hoje regulamentado por lei nos Estados Unidos-, não hesitando em chamar os arqueólogos contrários aos direitos dos índios sobre os restos de seus ancestrais de "cães de guarda dos mestres coloniais".
McGuire citou como exemplo máximo dos elos da comunidade científica com os opressores brancos o famoso Homem de Kennewick, esqueleto de cerca de 9 mil anos encontrado no Estado de Washington, que seria, segundo noticiou a imprensa com estardalhaço alguns anos atrás, a prova de que populações caucasianas teriam habitado o continente antes dos povos indígenas de origem asiática, o que poderia causar um abalo considerável no direito destes sobre a terra de seus ancestrais. Para McGuire, porém -como, aliás, para a maioria dos arqueólogos- não é possível que um esqueleto tão velho pertença a uma raça moderna.
Abordagens como as de Joan Gero e Randall McGuire parecem seguir de perto o movimento que vem ocorrendo nas ciências e artes contemporâneas.
Ele rechaça "grandes teorias", aplicáveis em bloco a qualquer caso, propondo, em seu lugar, métodos adequados apenas a situações locais. O resultado é o estilhaçamento dos padrões universais e, no caso em questão, a desconfiança da própria validade da arqueologia. Provavelmente atentos ao poder autodestrutivo de tais posições, os organizadores do evento convidaram para duas das três sessões plenárias dois dos mais irredutíveis evolucionistas, que acreditam plenamente na construção de modelos de validade universal -fato que, por sua vez, demonstra que o evolucionismo está criando raízes sólidas na América do Sul, o que é evidente no caso argentino. O primeiro deles, Robert Layton, da Universidade de Durham (Inglaterra), expôs com clareza didática o modo como as idéias de Darwin podem ser úteis ainda hoje. É verdade que, segundo explicou, elas apresentam fraquezas, tais como não considerar questões de ordem ecológica e dar origem a especulações errôneas, como as do darwinismo social, que propunha que as sociedades complexas seriam superiores às simples. No entanto, permitem chegar a conclusões importantes. Por exemplo: os padrões de comportamento são aprendidos, mas estão sujeitos à seleção natural darwiniana; a busca racional de satisfação do interesse próprio imita os efeitos da seleção natural. A segunda palestra plenária de orientação evolucionista, feita por Stephen Shennan, da University College London, foi talvez a mais polêmica do evento, trombando de frente com os multiculturalistas e também com os marxistas. Propondo uma arqueologia analítica, derivada do processualismo de Clarke nos anos 60, Shennan iniciou sua fala lamentando a "tirania do presente" no debate arqueológico contemporâneo (uma clara provocação aos defensores da arqueologia de gênero e étnica). A seguir, suas alfinetadas se dirigiram ao movimento de herança cultural, que, segundo Stephen Shennan, por válido que seja, acaba centrando todo o debate sobre a propriedade do material arqueológico, relegando a segundo plano aquilo que o material pode revelar sobre o passado. Outro ponto polêmico abordado por Shennan é a importância excessiva dada ao "povo" nas abordagens multiculturais, fazendo com que arqueólogos assumam o papel de "etnógrafos de um presente perdido", que tentam desesperadamente resolver os problemas causados pelo fato de que o "povo" ao qual se dirigem há muito já morreu e seus resíduos praticamente desapareceram. Sem descartar a importância da ação humana, Shennan propõe centrar o foco sobre a cultura material por meio de padrões diacrônicos (que variam de acordo com o período histórico estudado), pelos quais, segundo ele, podem-se estabelecer laços mais seguros entre o passado e o presente. A lógica agressiva de tais argumentos provocou protestos imediatos, em especial de Antonio Gilman, norte-americano de origem espanhola, da Universidade de Binghamton, que condenou seu normativismo. Gilman, que fez a palestra de abertura do evento, tem, no entanto, posição derivada da mesma escola processual dos anos 60. Atém-se, de todo modo, a um marxismo dogmático, do qual parece ser, no momento atual, um dos raros representantes.

Presença brasileira
Em termos numéricos, o Brasil foi o segundo país da América do Sul em número de representantes, abaixo da Argentina, com maioria absoluta. Mas o Brasil ainda está longe do avanço do estudo arqueológico observado na Argentina, que conta atualmente com oito cursos de graduação na matéria, em universidades públicas e gratuitas, enquanto o Brasil ainda concentra essa especialidade em alguns poucos cursos de pós-graduação.
Diante do debate teórico, os brasileiros se sentem à vontade num ecletismo de quem ainda não tem tradição no terreno. Eduardo Neves assim explicou a posição brasileira: "Houve nos anos 60 e 70 uma polarização muito grande entre uma arqueologia de linha francesa e uma de linha norte-americana, mas a tendência que se verifica hoje em dia é uma espécie de estilhaçamento, que no fundo é consequência da condição pós-moderna." Mas mesmo em seus estudos e, principalmente, nos de Denise Gomes (do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP), nota-se que a presença do evolucionismo inglês vem se consolidando. Gomes, que fez um balanço das influências da abordagem histórico-cultural na arqueologia amazônica, lança mão dos estudos de Shennan que, segundo ela, "revitalizam questões cruciais para a história cultural, substituindo categorias explicativas simplistas por idéias da teoria evolucionista de Darwin".
Outra corrente entre os brasileiros, que se fez notar no congresso, foi a etno-arqueologia, ramo que parece particularmente frutífero no Brasil, onde as populações indígenas atuais, por meio de resquícios materiais, podem ser relacionadas a seus ancestrais pré-históricos. Foi o caso do trabalho apresentado por Fabíola Silva (Antropologia Social, USP) sobre os asurinis do Xingu.
Apesar da dependência notória do pensamento estrangeiro, o diálogo internacional traz inegáveis benefícios à teoria local no Brasil, que cresce a passos largos e promete uma presença mais incisiva no próximo encontro, a realizar-se na Colômbia, em 2002.


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