São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2007

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+ Marcelo Leite

Cenas de revisão explícita


Ataque a artigo sobre transgênico vira lavagem de roupa suja

A crítica pública compõe parte essencial dos usos e costumes no campo da pesquisa científica. Há uma exceção importante a essa prática, a chamada revisão por pares ("peer review", em inglês), em que auditores anônimos auxiliam editores de periódicos científicos na decisão de publicar ou não um artigo, ou de solicitar alterações para que seja aceito.
O sigilo dá margem a distorções e manipulações, mas o método ainda goza de grande prestígio entre pesquisadores de ciências naturais. Para eles, não se inventou ainda coisa melhor. É uma espécie de pedra-de-toque: se não passou por "peer review", não vale. Quando se abre exceção à regra do segredo, é porque há algo sério em jogo -ou porque vem chumbo grosso por aí.
O periódico mensal "Nature Biotechnology" enveredou pelo segundo caminho, embora em aparência trilhando o primeiro. Em sete páginas (981-987) de sua edição deste mês (vol. 25, nš 9), lançou ataque inusitado a um estudo polêmico sobre transgênicos de Irina Ermakova, neurocientista da Academia Russa de Ciências, anunciado em dezembro de 2005.
O trabalho de Ermakova ganhou repercussão depois de apresentado numa conferência de especialistas em Frankfurt, na Alemanha. De acordo com ela, ratos alimentados com soja transgênica geneticamente modificada tolerante ao herbicida glifosato (de tipo similar ao que causa controvérsia no Brasil há nove anos) geravam filhotes com taxas reduzidas de sobrevivência e crescimento prejudicado.
Era tudo que os adversários da transgenia queriam ouvir. A pesquisa russa foi adotada por vários grupos como a prova -científica- de que ao menos uma variedade de alimento geneticamente modificado trazia, sim, riscos potenciais à saúde humana. A "Nature Biotechnology" tomou para si a tarefa de desdizê-la.
Primeiro, pediu a Ermakova que fornecesse, em suas próprias palavras, detalhes sobre os experimentos. Depois, solicitou a quatro outros especialistas que comentassem suas informações. Por fim, juntou tudo no texto "Soja GM [geneticamente modificada] e Segurança de Saúde -Uma Controvérsia Reexaminada", assinada por seu editor, Andrew Marshall.
O resultado são cenas explícitas de lavagem de roupa suja. Pelo menos um dos críticos convidados tem ligações abertas com a indústria biotecnológica. Não há surpresa, assim, na virulência das objeções do grupo. Um parágrafo exemplar: "O planejamento do experimento não segue protocolos internacionalmente reconhecidos que foram desenvolvidos para guiar pesquisadores no planejamento adequado. A natureza do material original [soja GM] é desconhecida, o consumo de cada animal é desconhecido, e a composição da dieta é desconhecida. Muito poucos animais foram estudados, e as diferenças de gênero não foram registradas. As taxas de mortalidade anormalmente altas e as baixas taxas de crescimento nos grupos de controle indicam cuidados deficientes com os animais."
Não é preciso ser versado em jargão científico para perceber que a acusam, pura e simplesmente, de incompetência. Ou coisa pior: "Se ela tinha dúvidas sobre seus próprios resultados, como diz, não deveria ter devotado tanto tempo dando publicidade a estudos que são patentemente falhos".
É espantoso que cientistas naturais se dirijam uns aos outros, em público, nesses termos. Mais espantoso ainda é que a "Nature Biotechnology" publique o ataque sem mostrá-lo antes a Ermakova e sem dar-lhe direito à réplica na mesma edição.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( www.cienciaemdia.zip.net ). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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