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+ Marcelo Gleiser
Duas culturas
Como teorias tão especulativas e tão difíceis de testar podem ser tão populares?
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Quando a expressão "duas culturas" é mencionada, pensa-se logo no físico e escritor inglês C. P. Snow, que no final da década
de 1950 argumentou que a rixa entre
as culturas científica e humanística
ameaçava a produção acadêmica. Esta
poderia tornar-se estéril, destituída
de idéias verdadeiramente novas. Hoje, quero abordar uma outra rixa que,
apesar de mais interna à física, repercute em várias áreas. Trata-se da disputa entre os físicos que trabalham na teoria das supercordas e, essencialmente, todos os outros.
Antes de mais nada, um esclarecimento. "Supercordas" é o nome dado
às teorias da física de altas energias
que visam mostrar que tudo que existe na natureza é manifestação de uma
única força. A física descreve o mundo
natural em termos de interações entre
os vários tipos de força. Após 400 anos
de pesquisa e experimentação, a versão atual dessa narrativa resume tudo
que percebemos e medimos em termos de quatro forças: as forças gravitacional e eletromagnética, que conhecemos bem, e as forças nucleares
forte e fraca que, como diz o nome, só
atuam dentro do núcleo atômico.
Albert Einstein passou os últimos
30 anos de sua vida tentando encontrar uma formulação na qual as forças
gravitacional e eletromagnética fossem, na verdade, uma única força, capaz de se manifestar de dois modos.
Apesar de ter falhado na empreitada, a
idéia persistiu, em parte porque a
maioria dos físicos vive numa cultura
monoteísta, em parte pelo sucesso
que outras unificações tiveram na física e em parte porque a função da física
é tentar obter a descrição mais simples possível dos fenômenos naturais.
Milhares de físicos continuam tentando encontrar essa força unificada. A
idéia mais promissora é, sem dúvida, a
das supercordas, a teoria que substitui
o elétron e outras partículas fundamentais da matéria por tubos de energia -as supercordas- que existem em nove dimensões espaciais (seis a mais
do que as que vemos) e cujos efeitos se
manifestam a distâncias muito menores do que as que podem ser medidas
experimentalmente, ao menos no futuro próximo.
Nada de errado em construir teorias especulativas sobre o mundo. A
maioria das grandes idéias científicas
surge exatamente assim, por meio de
especulações. Mas o que vem ocorrendo é um ressentimento crescente entre os físicos que trabalham em outras áreas, que afirmam que as supercordas atraem gente e dinheiro demais.
Dinheiro, aqui, significa financiamento para pesquisa e o número de
empregos nessa área, tanto em pós-doutorados quanto em vagas para
professores. "Como teorias tão especulativas, que jamais foram demonstradas e que têm chances apenas remotas de serem testadas com a tecnologia atual, podem ser tão populares e
bem-sucedidas?" -perguntam os físicos de outras áreas. O problema é de
natureza filosófica, já que a essência
da física é a construção de teorias "testáveis" sobre o mundo. Se uma teoria
não pode ser testada, ou se pode ser
modificada a cada vez que é demonstrada incorreta, feito um peixe escorregadio que ninguém consegue agarrar, o que essa teoria explica? Ela é
uma teoria física ou apenas especulação metafísica? Essa é a rixa.
O sucesso das supercordas vem do
seu apelo mítico: a teoria das teorias, o
mundo numa equação, a "mente de
Deus" etc. Mas não é por isso que devem ser desmerecidas. Mesmo se erradas, muito se aprende com elas.
Se certas, serão a coroação de quase três
milênios de platonismo. Nesse meio-tempo, o ideal não seria cortar o financiamento dessa área de pesquisa, mas ampliar o das outras. Um bolo
maior alimenta mais gente.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo".
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