São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2004

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BIOMEDICINA

Linhagens liberadas pelo governo americano estão contaminadas e não servem para transplante, diz estudo

Célula-tronco de Bush é inútil para terapia

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

A imensa maioria das linhagens de células-tronco embrionárias já produzidas, incluindo todas as que têm autorização para estudo com financiamento federal nos EUA, pode ser inútil para o desenvolvimento de terapias contra doenças em humanos.
A conclusão é de um estudo liderado por Fred Gage, do Instituto Salk, na Califórnia, que contou com a participação do brasileiro Alysson Muotri, pesquisador da mesma instituição americana. O artigo relatando os resultados já foi revisto e aceito para publicação por uma prestigiosa revista científica internacional.
Os cientistas descobriram que a forma como a cultura das células-tronco é realizada, em meio a soro bovino e a células extraídas de camundongo, acaba por transferir uma substância indesejada à cultura, que normalmente só está presente nos animais, mas não em humanos. Demonstrou-se que essas células-tronco embrionárias mantêm esse composto em sua superfície mesmo depois de extraídas do meio de cultura.
O problema de tudo isso é que a maioria dos humanos não só não possui essa substância como tem um anticorpo especificamente projetado para atacá-la. Em outras palavras, qualquer tentativa de injetar essas células numa pessoa provocariam uma resposta do sistema imunológico -que as encontraria e destruiria.
As células-tronco são tão atraentes para os cientistas porque são indiferenciadas, com o potencial para formar qualquer tipo de tecido do corpo. Com isso, poderiam ser úteis no tratamento de várias enfermidades hoje incuráveis, desde males neurológicos, com o mal de Parkinson, até doenças como o diabetes.
Embora existam células-tronco em organismos adultos, os cientistas acreditam que as que são extraídas de embriões têm maior potencial para o desenvolvimento de tratamentos. O problema é que, para extraí-las, é preciso destruir o embrião -daí a polêmica em torno do tema.
A despeito de protestos da comunidade científica, o presidente americano George W. Bush instituiu uma política restritiva à pesquisa com células-tronco embrionária. Hoje, verbas federais só podem ser aplicadas em estudos com as linhagens criadas antes da adoção da nova política, em 2001.
"Nós testamos apenas uma delas, mas todas são produzidas da mesma maneira, usando ou o soro bovino, ou um substituto de soro, que também contém substâncias provenientes de animais", Muotri à Folha.

Correção de curso
Além de demonstrar o problema com as atuais linhagens, os pesquisadores realizaram algumas tentativas de "corrigi-las". Perceberam que, ao manter essas células em meio a uma cultura de soro humano por uma semana, a concentração da substância indesejada cai violentamente. Mas eles enfatizam que seria muito arriscado implantar essas células em pacientes.
"A FDA [agência que regula fármacos e alimentos nos EUA] nunca aprovaria algo assim", diz Muotri. "O melhor mesmo seria criar novas linhagens, do zero, usando soro humano."
"Isso mostra que essa idéia de Bush, de usar as linhagens já existentes, não é por aí. É preciso fazer novas linhagens. Se o propósito é chegar a terapias, usar as linhagens que já estão aí é perda de tempo", afirma a geneticista Mayana Zatz, da USP, que não esteve envolvida no estudo. "Eu nunca gostei dessa idéia de cultivar células humanas em soro de cavalo ou bovino", diz Zatz.

Eleição
Por ora, ao menos usando recursos do governo federal, a opção de produzir novas linhagens está vedada aos cientistas americanos. Mas a situação pode mudar caso o concorrente de Bush à Presidência, o democrata John Kerry, saia vencedor das eleições que do próximo dia 2. Ele declarou que, caso eleito, irá afrouxar as regras que limitam financiamento federal a pesquisas com células embrionárias.
No Brasil, atualmente, o estudo de células-tronco embrionárias humanas é proibido. O projeto da Lei de Biossegurança, como foi aprovado no Senado, liberaria estudos com embriões descartados de clínicas de fertilidade, mas a proposta ainda precisa de aprovação da Câmara e sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.


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