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ANTROPOLOGIA
Análise do "menino do Lapedo", achado em Portugal, sugere longa história de miscigenação entre espécies
Livro reafirma união sapiens-neandertal
CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA
REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Um estudo de 610 páginas, publicado hoje, quer pôr um ponto
final numa das questões mais nebulosas da evolução humana. Para seus autores, não há mais discussão: neandertais e humanos
modernos se misturaram e, milênios depois de seu primeiro encontro, a união ainda era evidente
num menino que morreu onde
hoje é Portugal.
É essa criança, com não mais de
cinco anos quando foi enterrada
numa gruta perto de Leiria, que
motivou a criação do livro. Apelidado de "menino do Lapedo", o
esqueleto causou sensação ao ter
sua descrição publicada pelo arqueólogo português João Zilhão e
pelo antropólogo norte-americano Erik Trinkaus em 1999, na revista científica "PNAS".
Com 24,5 mil anos de idade, o
menino teria vivido 2.000 anos
depois que o último neandertal
pisou o solo europeu. Mesmo assim, a palavra usada por seu descobridores para defini-lo foi "mosaico" -uma mistura complexa
de traços modernos e neandertais.
Para a equipe, o significado disso era claro. Em vez de uma substituição completa de neandertais
por humanos modernos vindos
da África, o contato entre os grupos fora uma absorção lenta, por
miscigenação, deixando marcas
que duraram milênios.
Na mesma edição da revista, no
entanto, um comentário menosprezava a hipótese como "corajosa e imaginativa", mas falha.
Escrito por Ian Tattersal, especialista em neandertais do Museu
Americano de História Natural, o
texto dizia que nenhum dos traços do menino atribuídos à sua
ascendência neandertal era realmente arcaico. Para ele, o mais
provável era que se tratasse simplesmente de uma criança moderna um tanto atarracada.
Para piorar a situação, estudos
genéticos publicados depois mostravam que neandertais e Homo
sapiens são espécies diferentes,
que a princípio não poderiam se
misturar e deixar descendentes
férteis. A velha idéia parecia imbatível: mais adaptáveis e com
melhor tecnologia, os humanos
modernos teriam varrido seus
parentes da Europa.
Hora da revanche
Zilhão e Trinkaus, dispostos a
confirmar a importância do fóssil,
reuniram 30 especialistas de diversas áreas e nacionalidades para
reestudar tanto o esqueleto quanto o local onde ele foi achado e calar os críticos. O resultado é a monografia que está sendo lançada
hoje em Lisboa.
A dupla nunca esteve tão segura
de sua hipótese. "Nossa interpretação continua valendo", disse
Trinkaus à Folha. "Até onde eu
sei, a pergunta não é mais se neandertais e humanos modernos se
misturaram, mas em que grau a
mistura ocorreu", afirma. Trinkaus cita as pernas muito curtas
do menino como marca de sua
origem parcialmente neandertal.
O trabalho de Zilhão, por outro
lado, revelou detalhes da cerimônia de enterramento da criança.
"Foi aberta uma fossa, acenderam uma fogueira e o corpo foi
provavelmente amortalhado numa pele, tingida com ocre", conta
o arqueólogo. O menino tinha na
testa um diadema formado por
quatro dentes de cervo e um
coelho jovem foi posto na cova,
aparentemente como oferenda.
Já Christoph Zollikofer e Marcia
Ponce de León, da Universidade
de Zurique, na Suíça, reconstruíram o crânio. O trabalho mostrou
"traços claramente H. sapiens",
diz Ponce de León. Mesmo assim,
ela ressalva que espécies diferentes podem se misturar na natureza e gerar descendentes férteis,
como chimpanzés e bonobos.
"Realmente não sei e realmente
não me importo", brinca Trinkaus ao ouvir a pergunta: humanos e neandertais são, afinal,
membros de espécies diferentes?
"Se eram diferentes, mesmo assim eram muito próximas. A interação entre elas foi longa e complexa, levando milhares de anos."
"Não vejo motivo para que não
tenha havido a mistura", diz Zilhão. "As barreiras biológicas, culturais e comportamentais que separavam os dois povos certamente não eram suficientes para impedir isso", afirma.
Para Trinkaus, a idéia de mestiçagem irrita alguns cientistas
"porque não parece apropriada".
"Para eles, os neandertais são menos humanos que nós. E nos misturarmos com eles nos faz parecer menos únicos -mas ao mesmo tempo pode nos deixar mais próximos da natureza", pondera.
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