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São Paulo, sexta-feira, 31 de janeiro de 2003

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ANTROPOLOGIA

Análise do "menino do Lapedo", achado em Portugal, sugere longa história de miscigenação entre espécies

Livro reafirma união sapiens-neandertal

CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA
REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Um estudo de 610 páginas, publicado hoje, quer pôr um ponto final numa das questões mais nebulosas da evolução humana. Para seus autores, não há mais discussão: neandertais e humanos modernos se misturaram e, milênios depois de seu primeiro encontro, a união ainda era evidente num menino que morreu onde hoje é Portugal.
É essa criança, com não mais de cinco anos quando foi enterrada numa gruta perto de Leiria, que motivou a criação do livro. Apelidado de "menino do Lapedo", o esqueleto causou sensação ao ter sua descrição publicada pelo arqueólogo português João Zilhão e pelo antropólogo norte-americano Erik Trinkaus em 1999, na revista científica "PNAS".
Com 24,5 mil anos de idade, o menino teria vivido 2.000 anos depois que o último neandertal pisou o solo europeu. Mesmo assim, a palavra usada por seu descobridores para defini-lo foi "mosaico" -uma mistura complexa de traços modernos e neandertais.
Para a equipe, o significado disso era claro. Em vez de uma substituição completa de neandertais por humanos modernos vindos da África, o contato entre os grupos fora uma absorção lenta, por miscigenação, deixando marcas que duraram milênios.
Na mesma edição da revista, no entanto, um comentário menosprezava a hipótese como "corajosa e imaginativa", mas falha.
Escrito por Ian Tattersal, especialista em neandertais do Museu Americano de História Natural, o texto dizia que nenhum dos traços do menino atribuídos à sua ascendência neandertal era realmente arcaico. Para ele, o mais provável era que se tratasse simplesmente de uma criança moderna um tanto atarracada.
Para piorar a situação, estudos genéticos publicados depois mostravam que neandertais e Homo sapiens são espécies diferentes, que a princípio não poderiam se misturar e deixar descendentes férteis. A velha idéia parecia imbatível: mais adaptáveis e com melhor tecnologia, os humanos modernos teriam varrido seus parentes da Europa.

Hora da revanche
Zilhão e Trinkaus, dispostos a confirmar a importância do fóssil, reuniram 30 especialistas de diversas áreas e nacionalidades para reestudar tanto o esqueleto quanto o local onde ele foi achado e calar os críticos. O resultado é a monografia que está sendo lançada hoje em Lisboa.
A dupla nunca esteve tão segura de sua hipótese. "Nossa interpretação continua valendo", disse Trinkaus à Folha. "Até onde eu sei, a pergunta não é mais se neandertais e humanos modernos se misturaram, mas em que grau a mistura ocorreu", afirma. Trinkaus cita as pernas muito curtas do menino como marca de sua origem parcialmente neandertal.
O trabalho de Zilhão, por outro lado, revelou detalhes da cerimônia de enterramento da criança.
"Foi aberta uma fossa, acenderam uma fogueira e o corpo foi provavelmente amortalhado numa pele, tingida com ocre", conta o arqueólogo. O menino tinha na testa um diadema formado por quatro dentes de cervo e um coelho jovem foi posto na cova, aparentemente como oferenda.
Já Christoph Zollikofer e Marcia Ponce de León, da Universidade de Zurique, na Suíça, reconstruíram o crânio. O trabalho mostrou "traços claramente H. sapiens", diz Ponce de León. Mesmo assim, ela ressalva que espécies diferentes podem se misturar na natureza e gerar descendentes férteis, como chimpanzés e bonobos.
"Realmente não sei e realmente não me importo", brinca Trinkaus ao ouvir a pergunta: humanos e neandertais são, afinal, membros de espécies diferentes? "Se eram diferentes, mesmo assim eram muito próximas. A interação entre elas foi longa e complexa, levando milhares de anos."
"Não vejo motivo para que não tenha havido a mistura", diz Zilhão. "As barreiras biológicas, culturais e comportamentais que separavam os dois povos certamente não eram suficientes para impedir isso", afirma.
Para Trinkaus, a idéia de mestiçagem irrita alguns cientistas "porque não parece apropriada". "Para eles, os neandertais são menos humanos que nós. E nos misturarmos com eles nos faz parecer menos únicos -mas ao mesmo tempo pode nos deixar mais próximos da natureza", pondera.


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