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Minha História - Shoshana Baruk, 63

A dona da festa

Israelense que veio para o Brasil em 1987 conta como foi enfrentar guerras e abrir seu restaurante judaico no Bom Retiro, que fez fama com antigas receitas de família

(...) Depoimento a

LUIZA FECAROTTA
DE SÃO PAULO

Shoshana é rosa em hebraico. A flor. Meu nome é muito esquisito no Brasil, muita gente escuta pelo telefone e associa a um palavrão e ri na minha cara. Mas depois eu explico, Shoshana é rosa em hebraico.

Meus pais foram da Bulgária, depois da Segunda Guerra, para Israel e eu nasci em Haifa, uma cidade portuária, como Santos. Depois morei em Tel Aviv e Bat Yam.

Israel é um bom país, mas tem guerra. As casas eram escuras para não sermos descobertos e bombardeados. Embaixo do prédio, tinha um abrigo antibombas. Quando soava o alarme a gente saía correndo, do quarto andar, pegava o que dava de comida, colchonete e ficava lá.

Meu marido era militar e, infelizmente, participou de quatro guerras. Depois da Guerra do Yom Kippur, em 1973, ele ficou tão chocado, que quis sair do país.

Lembro bem daquele dia em outubro de 1973. Foi uma guerra repentina. A gente estava em casa com um casal de amigos no jejum de 26 horas do Yom Kippur.

Começamos a ouvir barulho na rua, soou o alarme, ligamos o rádio, e os militares estavam sendo convocados.

Fui correndo para a cozinha, preparei dois sanduíches de queijo e tomate para o meu marido. E ele não quebrou o jejum, só comeu quando surgiu a primeira estrela.

Ficou seis meses longe.

PAÍS SEM GUERRA

Viemos pela primeira vez ao Brasil, um país que não tem guerra, em 1974 -minha mãe já morava aqui e já tinha a Casa Búlgara [onde vende burekas até hoje, aquelas roscas recheadas de batata].

Abri uma filial sabe onde? Na Barão de Capanema, nos Jardins. Eu podia estar rica.

Aprendi a falar português lendo jornal e assinalando palavras que eu não entendia. Mas não me adaptei e voltamos para Israel.

Viemos de novo ao Brasil em 1987, com visto permanente. Em 1991, abrimos o que hoje é o restaurante Delishop no Bom Retiro, bem perto de casa. Abrimos como rotisseria, mas os clientes comiam em pé, no balcão.

Tive de trazer prato, talher, mesa do meu apartamento.

Hoje, meu filho Nir cozinha. Ele cozinha muito bem.

CADERNO DE RECEITAS

Meu marido comprou um gravador para minha mãe traduzir o caderno de receitas da minha avó, que está escrito em búlgaro. Eu sei ler búlgaro, mas só letra de fôrma, e está tudo em letra de mão.

Preciso me apressar, minha mãe já tem 85 anos.

O caderno já está com a cor marrom nas folhas, daqui a pouco não vai dar nem para decifrar o que está escrito.

A receita do pudim está no caderno -leva leite, açúcar, ovos e só. Eu via minha avó fazer e minha mãe diz que a bisavó dela já fazia.

Naquela época, quando a minha família chegou a Israel, fazia-se em lata de tomate. A gente cortava as latas e fazia dentro porque éramos refugiados da guerra, não tínhamos as fôrmas.

Lembro bem da minha bisavó, eu ficava na cozinha enquanto ela fazia burekas. Ela me dava pedaços de massa.

ANO-NOVO JUDAICO

Somos de uma família judaica tradicional e laica, mas respeitamos as festas. Vou para a cozinha na quinta e passo quatro dias trabalhando para o Ano-Novo judaico, sem falar com ninguém.

Neste ano, minha mãe não tem forças para fazer as fritas da praça. É muito trabalho. Você precisa cozinhar só a parte branca do alho-poró, espremer muito bem com a mão e moer. Depois colocar um punhado de carne, ovos, sal e pimenta e fritar.

Em maio, fiz para a festa de cem anos de um cliente. Hoje [no último dia 6], recebi uma encomenda de uma entrada romena e búlgara que eu servia antigamente. Um senhor fez 90 anos e a mulher dele queria que eu preparasse um almoço especial.

São ovas de carpa feitas como uma maionese, batidas por uma hora na mão. Chama-se ikra. O peixeiro tira as ovas da carpa viva, no aquário. Depois tem de salgar por 48 horas e bater na mão como maionese, gota por gota de óleo e sal. Só.

Vira um creme que se come com cebola crua picada, azeitona preta e pão preto. É um caviar de pobre, mas dez vezes mais gostoso.

São receitas de família que fazemos até hoje. Receitas que não podem se perder.

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